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Estudo com cristais. Criptógamas (9/13)
Então eu a vi. Nesse dia, eu a vi.
A flor de seis pétalas pode ocorrer em qualquer estação. Qualquer parte. Mesmo onde não se supõe um jardim. Ela é rara e efêmera. Dá-se a todos, ainda que poucos a apreciem em seu esplendor momentâneo, quase camuflado. Poucos, os atentos. Mais: entre os geômetras, os mais vulneráveis: os que, à sua semelhança, ocorrem também com raridade, quase despercebidos. O que os diferencia intimamente: o espécime observado não se dá conta de sua condição, enquanto os que o identificam vivem, ainda que obscuramente, sob o signo de sua singularidade, e sofrem-na, de certa forma. Nela, também, encontram o húmus próprio à nutrição de seus sonhos. Nela se descobrem e se encontram, secretamente. Fertilizam-se e crescem, cultivando assim suas estranhas flores. Essas espantosas flores.
Um dia azul, de nuvens e ruas azuis. E os cidadãos a chamam, a essa cor, cinza. Pensam que o mundo ficou assim, cinzento, porque parou de chover e a cidade tem raízes em poças remanescentes. Enganam-se, como sempre. As chuvas são azuis. As cidades são azuis. O universo, mas guarde este segredo. Outro: o cosmo não é a vastidão visível que desafia os astrônomos, os físicos. É o por onde passamos. A rua e o ponto de ônibus, a cidade em seu espelho, o cristal deixado pelas chuvas. O ponto azul-claro. O cosmo multipovoado, tantos de nós. A multidão, a cidade refletida, o ponto de ônibus, o ponto. Então eu a vi. Nesse dia, eu a vi.
Clave de Sol, não vou descrevê-la, distraída, no ponto de espera: mas tudo concorreu para que se cristalizasse em meio ao movimento frenético de todos os que giram. Até hoje, se vejo cogumelos de cores vivas, despertando em algum ermo de jardim, após a noite de outono e orvalho, torno à infância, quando me era dado, no tempo infinito que sustenta essa fase, maravilhar-me com a variedade das criptógamas, fungos e cogumelos que surgiam pontilhando a relva úmida, entre as ervas rasteiras e umas raízes negras, espessas e calejadas, que faziam crer fossem invulneráveis. Muito raras vezes ocorre a grata combinação de todos os elementos que montam a imagem de uma pessoa – no caso, essa mulher. Sim, esse sonho. Essa forma nítida em meio ao mundo nublado, à cena urbana, entre uma e outra notícia que, de alguma forma, nos une a todos e nos faz apreensivos, que a paz conquistada não nos permite arriscá-la por um nome, hoje após a tormenta, uma herança de águas e cristais de chuvas. Aura de silêncio e surdo segredo situam-na em minha fase azul: Clave de Sol, safira lapidada entre cotidianos gris, jardim de surpresa. Considerando-se os impulsos, os sentimentos e as memórias que despertou em mim nessa manhã de azuis (quem sabe a noite houvesse deitado orvalho), agrada-me associá-la, Clave de Sol, ao assombro e ao encantamento de outonos muito remotos. Memória de momento. Cogumelo repentino.
Assim como a fissão nuclear desencadeia energia bastante para devastar um planeta, um detalhe pessoal, infinitamente íntimo e reagindo com olhos propensos ao encontro-chave, de número zero, pode irradiar partículas, algumas de estrutura hexagonal, que se propaguem por mais de uma geração, talvez atravessando o chumbo dos valores apenas materiais que se supunham a principal defesa, e isso de homem para homem, do místico ao matemático, cobrindo continentes e transpondo idiomas. Por enquanto, assemelha-se meu hexágono a estruturas mais simples e menos assustadoras, como constatado com frequência na íntima formação dos flocos de neve. Quase um cristal. Gira outra vez, pousa suavemente.
Lisette Maris em seu endereço de inverno
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Imagem: Jill Banks. Dia chuvoso em Nova York. 2010.
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