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Estudo com cristais. Carina (8/13)
Frágil, como todos os fortes.
“Você nem olha pra mim. Será que é homossexual?”
“Quem sabe?”
“É ou não?”
“Se fizer meu tipo…”
“Chegue mais perto.”
Carina me parece próxima à geometria: rosto anguloso, realçado por cabelos curtos, queixo em linha reta e lábios finos, de corte preciso. (Só os óculos de aro azul, o que há de artificialmente planejado, me fazem ver uma borboleta.) Alta e harmoniosa. Fora isso, uma leve rouquidão atravessa sua voz, de entonação quase sempre segura, e antecipa, nascendo do conjunto de sua perfeição, algum fundo de desordem. Sua língua se movimenta rapidamente, domina a minha, e impede que meus dentes se detenham em seus lábios por mais que uma fração de segundo. Atrevo-me, por fim, a convidá-la. Quando nos encontraremos à margem do mundo? Pede que não me meta em sua vida. Não tenho intenção. Prometo.
“E que não irá se apaixonar por mim.”
Um par de olhos poderosos,
“Chama isso de condição?”
mel e metal de lâminas, devassando os meus,
“Uma condição, meu caro.”
fita-me entre as asas da borboleta.
“Não posso lhe prometer isso… minha cara.”
Meu caro, cara Carina. Assim é o seu jogo no tratar-me entre as frases, deixando claro que não somos senão dois colegas de classe, de estudos, dois… amigos? Não seríamos tanto. Quando eu desejava encontrá-la, percorria ao seu lado os corredores da escola.
“Vai ter aula no fim de semana?”
Ela sorri à senha.
“Você me lembra alguém que conheci.”
“Verdade? Era homem ou mulher?”
Ao contrário das mulheres que veem num rosto escurecido pela barba recém-nascida uma alusão ao desprendimento e à aventura, Carina se atrai pela transparência. Quer meu rosto liso, exige seja esse o rosto de nossos encontros.
“Mais atraente, meu caro.”
“Não brinque assim. Sei que nunca fui atraente.”
Beija-me, sorri. Carina não procura em mim a geometria. O que a atrai?
“As mulheres têm razões secretas para quase tudo que fazem. Meu caro.”
Não lhe ocorre, ainda assim, que sou mesmo um geômetra, também secreto. Brincamos de ter um trato, pois não é sério. Em troca de meu rosto liso, a saia curta, as meias escuras que a fazem mais feminina. O colar de contas, como lhe pedi. Uma prova de… amizade?
“Talvez.”
Vejo que os lençóis foram trocados. Margens de caules interrompidos, sustentando estranhas borboletas. Considero a cama onde já nos conhecemos. Onde nos devassamos entre lábios e dedos, bocas e aberturas, dentes e carícias, como quando provo da saliva recendente e característica que lhe nasce do vértice das pernas e escorre sob minha língua ansiosa. Barras verticais em cerejeira torneada, às quais ela firmemente se segura, distendendo o corpo esguio que se mostra, vivo e intenso, perdendo os seios por esse ângulo. Morde-me os ombros e o peito, beija-me o ventre e as virilhas, lambe, abocanha e suga meu sexo exposto, meu centro de homem, enquanto afago sua cabeça, assistindo, como posso, ao movimento deslizante de seus lábios, à expressão de seu rosto inquieto, de olhos fechados e abertos, conforme sua vontade. O quarto ao meio-dia, subvertendo a tirania das agendas. Descalço seus sapatos pretos, mostram-se os pés escurecidos pelas meias. Carina tem a pele muito clara. Sua nudez comprova uma aversão ao sol, à exposição, ao que tenta as mulheres comuns. Seu corpo também é secreto, embora livre. O sol a pino desse domingo fica preso lá fora. Janelas cerradas.
“O Sol é um olho gigantesco. E eu não quero que me veja. Que nada saiba de mim.”
Sentados frente um ao outro, ela sobre minhas pernas dobradas, braços por cima dos ombros, cruzando-se atrás da nuca, voltamo-nos para baixo, para o manejo de nossos sexos. Um movimento ondulante de seus quadris detém por uma breve fração de tempo sua entrada no topo de minha intumescência, de alguma forma como se me beijasse. Então se abre, passa a descer suave mas intensamente, percorre-me até onde posso senti-la, com seu túnel oleoso e consistente. Púbis unidos, roçando-se e esmagando-se, com isso perdendo-nos do que somos, cada um de seu lado. Sinto sua vagina, meu pênis, nossa vagina, seu pênis, nosso pênis, minha vagina, não sei em que momento perco o controle sobre o meu prazer, sendo eu tragado por um êxtase irrefreável que parece nos mover para cima, para além de nós, inundando-nos de esperma cálido, denso e de certa forma líquido, então vejo que ela deita a cabeça para trás, oferecendo-me a perfeição de seu queixo e gemendo como se libertasse, no processo demorado de seu gozo, os resquícios ocultos de sua característica rouquidão.
“Conseguiu… minha cara?”
Ela geme, sorri. Uma gargalhada satisfeita e maliciosa, quase masculina.
“Não pensei que ainda pudesse conseguir… com um homem.”
Afago seu rosto, beijo-o de leve. Ela deixa de sorrir, parece nervosa. Abraça-me. Um tremor move seu corpo e se transmite ao meu. Continuo em silêncio, considerando-a com carinho. Aconchega a cabeça em meu peito. Fala, do fundo de sua rouquidão, por um soluço que a toma de surpresa e lhe subtrai fonemas.
“T nho edo.”
Rosto atrevido, gestos audaciosos. E tem medo. Frágil, como todos os fortes. Afago, como posso, seus cabelos curtos, mantenho-a junto a mim em silêncio, o que pode minha amizade retribuir à sua confissão concisa, sua grande prova de amizade. Não quero que se revele, a menos que seja sua vontade. Nada pergunto, nada digo. Sei que poucos homens penetraram sua vida dissimulada, singular, presa a um passado de amargos segredos, desde sua conturbada formação, própria inclusive a cercear sua naturalidade, sua tendência espontânea à subversão e à liberdade, apenas atenuada e compensada por algumas de suas poucas amantes.
Lisette Maris em seu endereço de inverno
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Imagem: Alexander Almark. Par perfeito.
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Comentários
Uma resposta para “Estudo com cristais. Carina (8/13)”
Eu li toda esta impressão, enquanto lia revivia momentos inesquecíveis.
Obrigado, Perce.
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