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Um amigo, um favor
Já ia lhe dizer que amar é só uma das bobagens em que a classe média acredita.
Verne se levanta, apanha o casaco. Começa a vesti-lo.
“É isso então, meu velho. A gente se vê. Vamos marcar outro desses.”
“Vamos sim. Você me faz esse favor então?”, Danilo enquanto se levanta também.
“Pode ter certeza, claro.”
Perto deles, a mesa com os rapazes falastrões. Em outra, um casal jovem, discreto. Um homem sozinho observando tudo ao redor. Duas mulheres que poderiam atraí-los. Uma família ocupando três mesas. Quatro amigos (uma garota entre eles) menos ruidosos, mas sorridentes.
“Diz pra ela que eu inventei tudo. Ela não acredita mais em mim, não acredita muito, quero dizer. Explica que eu fui inventando isso tudo conforme conversava com ela, que isso ia me despertando ideias e… que ela me inspirava e… Enfim, você sabe. É isso.”
Verne olha para ele, pensando no que dizer.
“É isso então?”
“É. Por enquanto é isso. Depois, em casa, ouvindo meu Shostakovich, eu escrevia.”
“O quê?”
“Nada.”
Verne outra vez olhando para ele, pensando no que dizer. Danilo lhe dissera um dia que poderia repetir tudo quantas vezes quisesse. Verne acena com a cabeça, significando: “Você não tem jeito mesmo…”.
“Você inventou isso aqui, eu sei”, ele diz, compreensivo. “Mas… a Ana Lúcia morreu mesmo, não é? É aquela que morreu, não é?”
“É, é. Você sabe disso. Não importa. Olha, não importa. Eu só não queria que a Liana pensasse nada errado de mim.”
“Mas Danilo… Olha, pensa comigo. É difícil mesmo acreditar em tudo. Você faz de uma coisa assim, que já passou, uma outra coisa enorme, certo? Vai esticando, complicando… Depois tenta remendar tudo. Conta uma porção de coisas pra ela, mas não conta direito nada do que aconteceu de verdade, então… Ora, então é uma mentira atrás da outra, e mais outra. Chega um ponto, você não consegue mais sustentar isso tudo e tem que continuar mentindo e… Desse jeito, ela tem que ficar desconfiada mesmo. Como não?”
“Eu sei, eu sei. Mas é que eu me divirto um pouco fazendo esse tipo de coisa. Eu não resisto, fazer o quê?”, Danilo baixa a cabeça como pedindo desculpas por alguma coisa. “A realidade é muito pobre. A vida é idiota. O mundo é mesquinho. E eu gosto de inventar, ficar pensando como seria se… Olha, enfim, você vai me ajudar, não vai?”
“Claro, já disse que sim. Vou mostrar tudo isso aqui pra ela. Vou conversar com ela, ela vai ver que eu existo, que eu sou seu amigo. Ela vai gostar mais ainda de você, você vai ver. Ela vai… amar você.”
Danilo o olha com um silêncio emocionado. Já ia lhe dizer que amar é só uma das bobagens em que a classe média acredita. Mas isso se dilui à frente do amigo. Verne, velhão, não me faça chorar. E diz, sorrindo: “Não sei não.”.
Verne, um anjo na Terra. Um anjo como os anjos que não existem.
“Vou falar com ela, você vai ver. Pode deixar comigo”, passa as páginas todas num gesto rápido, por nada, sorrindo – blurrrp! –, então deixando de sorrir, quase como se acabasse de ter uma revelação.
Depois de um abraço forte, esmagando os casacos, depois de se tocarem os ombros com um pequeno soco, sinal próprio dos machos distraídos, depois de avançar dois ou três passos rumo à saída, Verne ainda se volta, sorrindo como se só agora a tal revelação surtisse efeito.
“Você inventa, não é?”, Verne com um movimento afirmativo de cabeça, confirmando sua própria insinuação retórica.
Danilo move a cabeça também, sensibilizado por vê-lo partir, carregando seus papéis com especial cuidado, em seu ritmo e em seu tempo.
“Você inventa, não é? Você mente.”
52. O endereço real – anterior
Aqui termina o romance Marcas de gentis predadores.
Essa história começa aqui: 1. Marcas de gentis predadores. Abertura
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43. Um estreito, fino rastro de sangue
Imagem: Paul Klee. Teatro mágico (detalhe inferior). 1918.
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Comentários
2 respostas para “Um amigo, um favor”
Claro, fique à vontade, é uma honra.
Abraços.vou continuar lendo muito bom e, se me permites senhor Perce Polegatto! gostaria de compartilhar no facebook oque leio em seu sitie.
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