Office in a Small City por Edward Hopper

O endereço real

Ouve o destravar da fechadura, o velho mecanismo de abrir e fechar que todos nós usamos todos os dias.
Que usamos sempre para nós mesmos, de se abrir e depois se fechar.

 Claude Rogers. Escadaria em espiral.Liana espera à frente da porta, bolsa e pasta com papéis ocupando suas duas mãos. Um olhar sem vontade a qualquer coisa ao redor – a cor do piso, o ângulo da escadaria… Pernas juntas, ensaia uma posição mais vertical, mais digna, como a de um bravo soldado. É o segundo andar de um prédio baixo, sem elevador. Ela espera ser atendida após ter tocado uma única vez a campainha. O corredor não é muito claro. Mas não é escuro. Talvez um pouco, para quem vem da rua. Mas está bem melhor, pode ver tudo agora. Confirma o número na porta só por não ter o que fazer. Claro que o endereço é este. Já verificou tudo, passo a passo. Uns passos que quase não aparecem muito, a não ser quando muito próximos da porta, por causa de suas sapatilhas baixas, discretas. Ouve o destravar da fechadura, o velho mecanismo de abrir e fechar que todos nós usamos todos os dias, que usamos sempre para nós mesmos, de se abrir e depois se fechar. Engole uma porção de saliva, ainda uma vez. A porta se abre. Uma mulher de sua mesma idade, com mais de sessenta anos. Ela sabe disso porque já se falaram antes, por telefone. E Liana agora vem saber dela algo que ainda não sabe sobre as cópias que, há pouco mais de duas semanas, enviara a essa mulher pelo correio. Mas agora é diferente. Agora estão se vendo, de verdade. As duas sorriem, quase tristemente. Tristemente, enfim. Sorriem, de alguma forma.

“Você é a…”

Um delicado abraço, apenas à altura dos ombros, beijos trocados no rosto. Liana talvez não precisasse daquela dignidade vertical que tentava inventar um momento antes, agora entende. A porta se abre tranquila. A luz é melhor.

“Vamos entrar. Entre.”

Pode ver melhor agora, com a luz de dentro.

“Obrigada.”

Senta-se num sofá cinzento, tecido algo esgarçado e desfiado em partes mais baixas, talvez houvesse um gato por ali. A anfitriã já havia preparado a mesa de centro. Esfrega as mãos enquanto procura acomodar-se também.

“Esfriou bem de ontem pra hoje, não é?”

“Verdade, amanheceu bem frio hoje.”

“Fiquei contente de você ter vindo.”

Ana Lúcia é uma mulher bonita, agora com o queixo mal delineado e rugas benignas, que parecem estar nos lugares certos, próprias de sua idade, a mesma idade de Liana provavelmente, ou algo muito perto disso.

“Li tudo que você me mandou. Li mais de uma vez, acredite.”

“Acredito. Eu faria o mesmo. São coisas muito… intensas.”

“Eu nunca pensei que ele fosse fazer isso tudo”, sorri. “Tome, aceite um café.”

Ana Lúcia a serve. Fala um português claro, num ritmo agradável.

“Lamento o que aconteceu, Liana. Fiquei triste mesmo. Quero que saiba que eu compartilho, sinceramente, a sua dor.”

“Obrigada mesmo. Obrigada, de coração.”

“Sei que não é a mesma coisa, mas… Eu o conheci e… Nós significamos alguma coisa um para o outro. Pelo menos por um tempo. Por pouco tempo.”

“Claro. Eu sei que sim.”

“Vocês foram casados?”

“Sim. Por dezoito anos.”

“Puxa… Fico contente que vocês… É muito tempo para um casal hoje em dia, não é?”, sorri.

“Me pareceu pouco”, Liana sorrindo também.

“E, olhe, acredite, eu não podia imaginar que ele fantasiasse tanto sobre mim. Eu não sabia mesmo.”

“Sei, eu entendo. Sem problemas.”

“Bom, e… Como foi?”

“Como… foi? Você diz…”

“Como ele se foi?”

Liana sorve o café. Ah, isso. Poderia mesmo contar do que foram, ela e Danilo, intimamente. De fato, tem até vontade de contar. Por estranho que a ela mesma ainda se mostre tal impressão, confia nessa mulher à sua frente como se a presença dela lhe despertasse um desejo de se confessar, de contar tudo. Será que era esse o desejo que ele sentia, de contar tudo? De qualquer maneira, há algo de cumplicidade nesse encontro, uma prazerosa cumplicidade entre duas estranhas não tão estranhas.

“Um dia ele se levantou, tomou o café meio às pressas. Aliás, como ele sempre fazia. Mas então começou a falar uma mesma frase duas vezes. Depois, a terceira vez. Disse: ‘Não vou pela Francisco Junqueira hoje, por causa daquele trânsito empesteado lá, é melhor eu…’. E ficou parado. Disse tudo outra vez, como se não tivesse dito nada ainda. Não vou pela Francisco Junqueira por causa do trânsito empesteado, acho melhor eu… Então ele caiu, perdeu a consciência. Era um AVC.”

“Puxa…”

“Depois de internado, recuperado, o médico (a cardiologista) explicou a situação e exigiu que ele mudasse drasticamente os hábitos de vida. Aquilo tudo de sempre, além da medicação. Ele não se esforçou nada. Só resmungava, dizendo que esses exageros todos eram parte da máfia da medicina, que queria todas as pessoas sob seu controle, que o lobby dos grandes laboratórios, e coisa e tal, e outras coisas desse tipo. Ele tinha começado a escrever um romance, e quando ele ficava assim, cheio de ideias, esquecia de tudo em volta. Principalmente de remédios e conselhos. Esquecia dele mesmo.”

“É. Eu lembro.”

“Mesmo assim, ele tinha consciência dos riscos que estava correndo, e nisso começou a mudar. Mas eram outras coisas. Me mostrou essa pasta com esses papéis e disse que, se acontecesse alguma coisa, eu lesse com muita atenção e procurasse uma pessoa no endereço que estava aí dentro. Essa pessoa era você, claro. Eu falei pra ele: ‘Danilo, mas o que é isso aí? Por que não me mostrou isso antes, o que tem aí? Por que não me mostra isso agora? O que tem aí de tão importante?’. Mas ele falou: ‘Não tão importante. Nada é importante. Mas pode ser, para essa pessoa. Como foi um dia pra mim.’. ‘Por que não me mostra agora? O que você quer que eu faça?’, eu falava. ‘Porque não é importante, já disse. Já disse também que entregue essa parte, que eu já separei, para a pessoa descrita aqui dentro. É isso que eu quero que você faça, é só isso que eu quero que você faça por mim, pode ser?’”

“É assim mesmo que ele fala. É exatamente ele”, comenta Ana Lúcia com o sinal mínimo de um sorriso, mas parecendo um pouco triste agora, talvez docemente invejosa em saber dessa longa convivência que a outra lhe revela, que ela própria não teve com nenhum outro homem. “Vocês se amaram, não foi?”

“Ele me mostrou a pasta, mas levou de volta ao escritório, onde a guardava. Às vezes, ele não me dava tempo de pensar, de sentir. Imaginei uma porção de coisas, uma porção de coisas mesmo. Mas confiava nele. Sempre confiei. Não tentei pegar a pasta. Deixei correr.”

“Vocês se amaram, não é mesmo?”

“Ele tentou diminuir o trabalho, e nós começamos a caminhar juntos nos finais de semana. Mas, com o passar do tempo, ele ia arranjando desculpas e evitava as atividades físicas, coisa que ele sempre detestou. Voltava para a leitura, para os contos que escrevia, voltava para os textos, para os livros. Se aquilo fosse um veneno, ele tomaria do mesmo jeito.”

“Era o que ele sempre fazia. Eu lembro. Era anormal a paixão dele por livros.”

“Atividade física, nem pensar. Um dia, porque tinha acordado muito tarde, o sol quente. Outro dia, porque podia chover… A pressão continuava alta, os medicamentos pareciam não surtir mais efeito. O coração estava fraco. Mesmo assim, ele se recusava a voltar ao médico, à médica, temendo que ela o obrigasse a mudar tudo na sua rotina de novo. Dizia que se tivesse que ficar obedecendo àquilo tudo, sua vida acabaria ridícula, sem graça e cheia de obrigações, como a de um velho marechal aposentado – palavras dele. Sempre palavras dele. Mas no trabalho ele se realizava, não o sentia como obrigação, claro. Só que, como você imagina, o corpo não sabe disso. Quatro meses depois, em meio ao mesmo ritmo de vida de antes, que o tinha levado àquele acidente, ele sofreu um enfarte. Logo ao amanhecer. E morreu no final da tarde.”

“Puxa… Que pena. Que teimoso. Quando foi isso?”

“Ano passado. Eu guardei a pasta comigo, como você vê. Li página por página, aos poucos. Pensei em nem procurar ninguém, deixar tudo isso num canto, fazer outras coisas. Mas depois achei que não fazia sentido não realizar uma das últimas vontades dele – porque ele tinha outras. E também porque fiquei muito curiosa. Na verdade, foi mais por isso. Fiquei muito curiosa mesmo. E vim até aqui.”

Ana Lúcia baixa os olhos. Conserva o silêncio. Pensa em Danilo e sente uma sorrateira, quase imperceptível, inveja de Liana, a mulher que conseguira conquistá-lo afinal. Ana Lúcia não o amava, nunca o amou. Mas, em sua imaginação momentânea, gostaria de ter vivido essa teimosia toda dele, esses últimos dias com ele, gostaria de tê-lo visto em outra idade, gostaria de ter experimentado essa cumplicidade, esse companheirismo que, no fundo, nunca experimentou com ninguém.

“Danilo…”, ela suspira. E, só na maneira como pronuncia esse nome, aparece algo como: “Mas que teimoso…”. Ou: “Eu gostava tanto de você…”. Ou: “Que pena, meu amor…”. No mínimo. Tudo isso emergindo de uma só palavra, embaçando o ar da pequena sala, embaçando sua própria segurança ao evocar esse nome, um nome, uma memória impregnando tudo o que a envolve nesse breve instante.

“Ele trabalhava muito”, Liana tentando voltar à normalidade. “Não tinha noção do seu corpo, da sua saúde, achava tudo isso uma bobagem. Só se motivava com os seus resultados, quer dizer, com o resultado dos seus textos, de suas invenções literárias, sentia-se bem-sucedido com isso. E era, de certa maneira. Não se tratava de dinheiro, reconhecimento… Os textos eram muito bons, sabe? Surpreendentes.”

“Sim, ele era ingênuo, indeciso. Ansioso. Mas tinha algo intenso dentro dele. Tinha algo… intenso.”

Ana Lúcia sente que está prestes a mentir. Quase distorcendo o pouco tempo que dividiu com ele, quase exagerando e inventando outras intimidades, diálogos não acontecidos, situações não vividas, tendo como centro ela própria, sendo desejada por ele, só para contrapor alguma coisa ao relato natural dessa outra mulher, Liana, destituído de intencionalidade quanto a isso. Percebe a tempo. Não é mais uma mocinha, não precisa disso. Não vai cair em ciladas assim.

Liana espera que ela continue. Morde mais um biscoito, conforta-se com esse prazer simples.

“Ele não tinha noção do efeito que causava nas pessoas. Foi por isso que eu me senti atraída, entende? Não era pra agradá-lo, não era por piedade, como ele parece descrever aqui”, gesto enfatizando os papéis. “Eu via nele alguém especial. Não era o homem da minha vida, é lógico”, sorri a contragosto. “Mas eu queria, sim, conhecê-lo de qualquer jeito. Queria saber mais dele, saber como ele era em segredo, fora da escola, longe dos outros. Mas ele não era alguém que eu queria ter por muito tempo comigo. Ele me cansava com elogios, declarações, sonhos de futuro… Ih, eu não tinha nada a ver com aquilo. A gente estava em mundos diferentes, fora de sintonia. Eu nem sabia o que eu queria, saí com muitos caras na época. Eu queria conhecer os homens mesmo, não queria ficar com um. Sabia que um dia poderia acabar sozinha ou que poderia encontrar alguém, mas não era nada com ele, não era ele, nada naquele ano, nada naquela fase.”

“E você… encontrou alguém?”

“Encontrei. Mas, depois de alguns anos, foi ele quem encontrou outro alguém”, tenta sorrir. “Já faz tempo.”

“Ah, que chato…”

“Foi melhor assim. Mais um? Ótimo. Dá aqui sua xícara. Mas olha, fiquei muito curiosa e impressionada com o que o Danilo diz aqui. Ele realmente distorcia a realidade, criava coisas. Era o jeito de ele brincar de ser escritor, coisa que ele sempre gostou. Esse escritório, as finanças, essa matemática toda na cabeça dele talvez fosse a sua âncora, a sua segurança, quem sabe, a contrapartida pra não sair delirando de vez, com o que ele mesmo inventava.”

“Pode ser. Mas vocês dois… Vocês namoraram, não é?”, Liana cuidadosa com as palavras. “Isso não foi uma invenção. Não é?”

“Não, não foi. E nós não namoramos, não propriamente, não fomos namorados, nisso ele foi verdadeiro. Tivemos um caso, é assim que dizem. Mas quando fiquei com ele, fiquei só com ele. Nós fomos três vezes a um motel. Motéis diferentes, digo. A gente se encontrava na escola e ia, escondido. Na terceira vez, eu tive tontura, passei mal e desmaiei. Ele me levou dali pra casa, mas antes ficou um tempo comigo, rodando pela cidade, sem saber se me levava a um hospital ou à minha casa, de uma vez. Ele era assim: não conseguia decidir. Disse, depois, que nem sabia onde ficava alguma emergência ali perto. E ficou rodando, rodando…”

“Levou você pra casa?”

“Levou. Antes mesmo de chegar, eu já estava me recuperando. Estava fria, fraca. Nada de mais, só um desmaio, um mal-estar. Até hoje, não sei o que foi. Talvez alguma baixa de pressão. Coisa à toa, acontece.”

“E aquela arma…”

“Não, nada disso. Ele nunca teve arma nenhuma!” Gesto no ar, outro sorriso. “Aí começa a aventura de adolescente dele. Aí começam as mentiras cinematográficas dele.”

Liana absorve tais esclarecimentos enquanto observa Ana Lúcia com curiosidade e fascínio.

“Você se parece um pouco com o que ele conta. Na verdade… Você se parece muito com o que ele conta. Mas também não é a mesma, acho. Ele distorceu de novo.”

“Eu era mais ou menos daquele jeito mesmo. Era jovem, afinal. Depois fiz terapia, outras coisas rolaram, a vida passou. Desisti daquele curso, comecei outro. Passei a estudar sempre mais, decidida a dar a mim mesma e à minha mãe o que nos tinha faltado por tanto tempo: uma condição um pouco mais digna e mais tranquila.”

“E você estudou…”

“Eu me tornei tradutora-intérprete. Gostava de filmes, música, gostava de inglês. Um dia, surgiu uma oportunidade de dar aulas particulares numa multinacional. Nesse período, decidiram me contratar. Mas isso, inicialmente, não estava nos planos deles. Nem nos meus. É que a empresa cresceu, e um dos diretores achou que eu tinha o perfil para preencher uma das vagas na administração. Com o tempo, fui promovida a outra função, e me identifiquei com tudo ali. Enquanto essas coisas, essas mudanças, aconteciam na minha vida, eu sempre contava tudo aos meus pais, eles me valorizavam muito. Principalmente meu pai, que sempre me apoiou muito.”

“Seu… pai?”

“Sim, meu pai. Meu querido pai, já falecido. Ele sempre foi mais do que um apoio, era um amigo para todas as horas. Um homem lindo.”

“Entendo.”

“Três anos depois, aconteceu o pior. E o homem em quem eu confiei desde o começo, a quem me entreguei sinceramente, que afinal me usou e depois tanto me enganou… Bom, mas isso não vem ao caso. Essa conversa toda… Vou ficar aqui falando da minha vida…”

“Não, não. Fique à vontade, por favor, continue.”

“Não, isso não vem ao caso agora. Pega mais um.”

“Pode deixar. Uma delícia. Muito bom. Me diga. E os recortes? E os jornais sobre a sua morte, as notícias?”

“Recortes? Notícias da minha morte? Não existe nada disso! Ele disse isso?”

“Disse. Várias vezes. Muitas vezes.”

“E você viu esses recortes?”

“Não.”

“Com certeza não existem. Outra fantasia dele.”

“É, sei”, sorri Liana um pouco triste por ter acreditado em tudo aquilo um dia. “Eu compreendo. Mas ele me ofereceu, sabe, se eu quisesse ver esses tais recortes. Ele me ofereceu várias vezes isso. Eu é que não quis. Fico pensando… E se eu quisesse?”

“Ah”, faz Ana Lúcia com um gesto no ar. “Ele inventaria qualquer outra coisa, fácil. Ih, isso não era problema, não era problema nenhum pra ele. Ele daria um jeito, como sempre fazia. Esses jornais não existem. Nem podem existir”, agora com uma breve risada. “Você está me vendo aqui, bem aqui, confia em mim, não é?”

Liana, rindo um pouco também. “Claro. Você está aí, bem viva. Não pode haver notícias sobre a sua morte.”

“Bem viva. Um pouco cansada, eu sei. Engordei um pouco, você está me vendo hoje. Mas não estou ainda de se jogar fora, não é mesmo?”

“Não, de jeito nenhum! Você está linda. Você está muito bem mesmo, menina, você é linda. Claro, esses jornais… Sim, a não ser que…”

“Acha que o Danilo gostaria de me ver assim, hoje?”

“A não ser que…”

“O quê?”

“Que você não seja… você mesma.”

“Como é?”

“A não ser que você não seja você mesma. Que seja outra pessoa. Que haja algum erro nos nomes. Nas identidades.”

Ana Lucia espera, em silêncio. Olhos abertos, parece paralisar.

“Não, não se preocupe, Ana. Não tenho vocação pra agente secreta, nada disso. Mas se houvesse alguém com o seu mesmo nome… Afinal, não é um nome tão raro assim.”

“Não, não é. Meu sobrenome também é muito comum. Mas fui eu a Ana Lúcia que beijou ele no carro, não outra. Pode ter certeza disso”, enfatiza, com algum respingo de provocação, quase batendo no peito, patriótica. “Também fui eu essa que… Quando você leu que… Ah, não importa! Você sabe. Não importa. Não precisamos disso tudo.”

Liana retoma a xícara, sorve outro gole.

“Ainda fico pensando: se eu insistisse em ver os recortes…”

“Se insistisse? Bom… Ele poderia dizer, por exemplo, que não estavam com ele no momento. Que estavam com a irmã dele, em Amparo.”

Liana interrompe o gesto, para de beber. Vai descendo a xícara no ar.

“O quê?”

“É só um exemplo, uma opção. Ele poderia dizer que estavam com a irmã dele.”

“Ele… tinha uma irmã?!”

“Tinha, claro. Não sabia?”

“Não. Ele nunca me falou. Como é possível? Uma irmã, você disse? Tem certeza?”

“Claro que sim. Pelo que sei…”

“Olha, incrível! Nós ficamos juntos por tanto tempo, e ele… ele nunca – nunca! – me falou.”

“Não é uma coisa boa de se falar. Ela se matou ainda jovem, sabe? Se matou em Amparo.”

Liana respira pela boca. Não fecha a boca. Olha Ana Lúcia como em transe.

“Em Amparo, é? Com… um tiro no peito?”

Ana Lúcia encara Liana de frente por um momento, como se adivinhasse algo.

“Não, querida. Nada disso. Uma overdose. Esqueça essas fantasias que você leu. Ela não deixou bilhetes nem nada. Mas sem dúvida foi intencional. Dois frascos inteiros.”

“Incrível…”

“Ela estava vivendo uma situação horrível, na verdade. Mesmo, eu me lembro. Além de ter sido sempre muito complicada. Sim, ela era mesmo muito complicada. Tch… Tadinha.”

“Incrível…”, Liana repete, no mesmo tom.

“Eu dizia a ele que eles pareciam namorados, ele e a irmã. Ele tinha muitos ciúmes dela. Eles moraram juntos durante uma parte do curso.”

“Nunca, ele nunca me disse. Eu nunca soube de nada disso.”

“Pelo jeito, ele conseguia mesmo guardar um segredo quando queria.”

“É que…”, Liana ainda assimilando a surpresa. “Da maneira como ele contava, tudo parecia real. Mesmo com dúvidas, acabei acreditando em tudo. Cheguei a ficar com medo.”

“Eu sei, isso era próprio dele. Testar as pessoas. Testar a sua própria capacidade de convencer, de fazer parecer real uma história qualquer, toda inventada. E, não sei como, ele conseguia. Ele me contava sobre uns amigos, sobre umas outras namoradas e essa coisa toda. Eu nunca conheci nenhum deles, nenhuma delas.”

“Será que ele inventou isso também?”

“Não sei. Pode ser coincidência. Eu só não conheci essas tais pessoas, só isso.”

“Mas agora, lembrando de certas coisas, vejo que não podia ser mesmo: aquilo de ele sair do hotel com o corpo dela… Com o seu corpo, aliás”, rindo um pouco.

“Você conheceu algum desses amigos dele?”

“Não. Quando eu o conheci, eles não se viam mais, há tempos. Numa das vezes em que ele passou mal, quer dizer, quando ele começava a falar coisas meio repetidas e como se estivesse em transe, disse que precisava conversar com o Valdinei, aquele amigo que morreu na queda de um avião. Que precisava falar com ele. Que talvez o irmão do Valdinei, que tinha ficado em sua cidade, tivesse o telefone dele. Coisas assim. Depois, perguntava do Verne. ‘Onde você marcou o telefone do Verne?’, ele perguntava, sem ouvir a resposta.”

“Devia estar misturando tudo. Ou esses caras existiram mesmo e… Tadinho.”

“Com ele, nunca se podia ter certeza sobre essas coisas, coisas desse tipo. Não se podia pensar: ou tudo existiu ou nada existiu. Porque algumas coisas eram reais, outras não. Só ele podia saber. E agora, fica a impressão de que talvez nem mesmo ele pudesse saber.”

“É. Que coisa… Não sei se todos os escritores são assim, não é? Alguns, você vendo entrevistas, parecem bem racionais.”

“É. Mas não sei até que ponto ele era um escritor de verdade. De qualquer forma, no fim, tudo isso se transforma em livros. Em fantasia. Em literatura.”

Café. Amenidades. Hora de partir. Despedem-se à porta, da mesma maneira como se cumprimentaram há uma hora e pouco.

“Obrigada por tudo.”

“Foi bom conhecer você. Vamos nos ver mais vezes.”

“Claro. Podemos nos ver mais vezes.”

Sim. Bem mais claro agora. Liana desce as escadas, tão solitárias quanto antes. Mas pode ver melhor, com a luz de dentro. Volta-se para cima, ao dobrar o primeiro lanço, suspeitando que Ana Lúcia assiste a cada um de seus passos, algo escurecida contra a claridade da sala, acompanhando sua descida silenciosa. Talvez esteja sutilmente enciumada ainda. Receia olhar de volta e encontrar um rosto diferente do que conheceu há pouco, talvez transfigurado por algum motivo, algum motivo íntimo, obscuro, secreto. Talvez guarde imagens criadas durante a conversa, quem sabe? Mas, se é isso, ela não o aparenta. Não se vê em seu rosto nenhum sinal de ressentimento ou frustração. Porque pode ser que no rosto de uma pessoa não se veja mesmo nenhum sinal de nada. Da porta meio aberta, verte a pouca luz que clareia os degraus.

“Podemos… ser amigas”, diz Liana torcendo o corpo, olhando-a de volta finalmente. Quase uma pergunta. Desce um degrau sem perceber, questionando-se em seguida e em silêncio se valerá a pena vê-la mais vezes. Se poderá confiar nela.

“Por que não?”, Ana Lúcia na penumbra, abrindo seu sorriso encantador. Definitivamente encantador.

Marcas de gentis predadores – Guia de leitura 

 53. Um amigo, um favor – sequência

51. Arranjo para impedir Ana Lúcia – anterior

Imagem: Claude Rogers. Escadaria em espiral.

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