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Papéis para Verne
Na literatura, a mentira se chama ficção, você sabe.
Val. Pensei que pudesse salvá-lo também, por meio da palavra, até mesmo por meio destas palavras horríveis: despedaçados, destroços… Lembro de uma última vez em que você, Val, esteve com a gente, nos velhos mesmos botecos, e a gente falava dessa vez sobre mudanças, que as coisas mudam, e de outras obviedades que nós, disfarçadamente, tentávamos sempre evitar. Alguém contava que outro alguém tinha morrido, um acidente ou uma doença, como aquele velho professor de alguns de nós… Você tinha um jeito racional de lidar com isso, poderia ser o exemplo para todos nós, os mais ou menos sentimentais e medrosos. O Verne parecia sempre ser o mais indignado, sempre um ar de surpresa e ligeira incompreensão. “Como assim, morreu?” O Verne não queria que ninguém morresse. E como foi com os nossos Beatles e com os cavaleiros da távola redonda, um dia teríamos mesmo que nos separar, cada um em seu caminho próprio. Imagino o Morghini dizendo: “Beatles? Mas que merda! Vocês ainda falam nisso?”. Com aquele seu mau humor que nos fazia falta. E o Souto responderia, em defesa dos menestréis sagrados: “Olha lá como fala! Escovou os dentes pra falar os nomes deles?”. E foi mais ou menos isso mesmo o que aconteceu daquela vez, quando o Morghini perdeu a paciência e parecia estar anunciando, involuntariamente, a separação: “Vocês ainda se orientam por isso? Não saem dessas merdas de músicas, criticam tudo e continuam uns babacas adolescentes, ninguém pode falar de um ídolo idiota que… Ah, quer saber? Fodam-se.”. Pedimos que ele voltasse, dizendo que era ele quem estava bancando o crianção, mas afinal não era. Era o ponto de saturação. E ficaram em minha memória as palavras dele quando virou as costas e saiu do bar: “Fodam-se. Façam o que bem entenderem. Vocês me fazem sofrer.”.
Verne baixa o papel na mesa.
“Era isso que queria me mostrar?”
Danilo silencia, pensa em não dizer nada antes de articular claramente o que pretende dizer de fato.
“Não… Não. Mas também era isso.”
Verne olha mais uma vez o papel, quase à toa, só porque iria mesmo olhar mais uma vez o papel, quase à toa.
“É a sua cara, Dan. É a nossa cara. Gostei muito. Sempre gostei muito do que você escreve. Escrevia. Você sabe.”
“É um texto bem simples. Não é nada. Mesmo, mesmo. Mas queria que você visse também outras coisas.”
Verne tinha deixado o casaco na cadeira, atrás de si. O frio é intenso lá fora. Ele havia chegado como de costume, os passos mansos, sem pressa. Tocou o ombro de Danilo, vindo de trás, querendo surpreendê-lo, mas sempre à sua maneira. Sempre sem querer assustar ninguém.
“Ahá! Tomando uma sem mim!”
“Verne, seu…”, Danilo se levanta. Agora que se reencontraram uma vez, podem se reencontrar sempre. Sim: um puta abraço, os dois.
“Agora vamos nos encontrar sempre, certo?”
“Certo, agora sim. Já devíamos ter feito isso, Danilo, e os outros também. Vamos ficando acomodados com os velhos amigos, não é? Mas agora, no século 21, a gente pode encontrar todo mundo.”
“Senta aí, meu querido. Oi! Amigo! Mais um aqui, por favor. E então, rapaz? Já viemos aqui uma vez, lembra?”
“Claro. Pensa que estou ficando gagá que nem você?”, senta-se em frente a Danilo, depois de ajustar o pesado casaco no encosto dessa cadeira em que se sentará em seguida. Tinham ouvido no rádio do carro que aquele vinha sendo, até então, o dia mais gelado do ano. Aliás, o mais gelado, especialmente, em muitos anos.
“E esse puta frio, hein, velho?”, esfregando as mãos.
“Pois é. Parece que agora é pra valer.”
“É, já estamos na estação. Vamos ver quanto tempo vai durar. Nessa cidade, isso é imprevisível.”
“É, vamos ver. Só sei que começou faz uma semana, mais ou menos.”
“Como você sabe que o inverno começou faz uma semana?”
“Foi a ultima vez que eu vi a Liana usando sandálias.”
Verne ri, surpreso.
“Ahahah… Está apaixonado mesmo. Que bobo. Ahahah…”
“Essas ciladas, não é, meu amigo?”
“Pois é. Nada como uma bundinha boa numa jeans justa. Não era assim que a gente falava? Ahahah…”
“É, era. Era sim.”
As voltas que este mundo dá, não diziam os antigos? Incrível constatar que, a esta altura da vida, é o Verne quem ri da suposta ingenuidade dele, é o Verne quem lhe diz isso, quem o chama de bobo. Danilo fica feliz em vê-lo rindo assim. Ele perdeu um pouco dos cabelos, a barba loira disfarça algum tom grisalho que os seus quarenta vão pintando aos poucos. Mas ainda é um homem com cara de jovem. Quando se fala no Barba Negra ou no Barba Azul, nesses trastes todos, percebemos que só os vilões serão lembrados, não o Verne com sua barba clara e com sua alma pura. Danilo sente-se na obrigação de resgatá-lo também, como a todos, uma tarefa inútil, derivada de carências pessoais. Ninguém tem obrigação de nada. Mas ele está ainda um restinho emocionado com o que vem pensando e recordando, tendo como fundo o ruído vocálico dos rapazes na mesa ao lado, pouco antes de o Verne chegar. Agora ele considera Verne com natural alegria, olha-o de frente, os dois com o chope à mão, uma sincera alegria em compartilhar a presença dele – e a alegria dele. Isso é amor de verdade. Gostar de alguém porque esse alguém é esse alguém. Os dois. Irmãos, com toda sinceridade.
“Verne, olha. Eu trouxe uma coisa, uma coisa aqui…”, desdobra um papel. Entrega-lhe o papel. Fica olhando o papel nas mãos do amigo. “Queria que você visse.”
Verne pega o papel. O papel, repetidamente. Danilo não se importa de olhar o papel nas mãos dele o tempo todo. Repetidamente.
Val. Pensei que pudesse salvá-lo também, por meio da palavra, até mesmo por meio destas palavras horríveis…
Agora, observar a cara dele depois de ter lido aquilo, vamos ver.
“Era isso que queria me mostrar?”
Danilo silencia, pensa em não dizer nada antes de articular claramente o que pretende dizer de fato.
“Não… Não. Mas também era isso.”
Isso já aconteceu. Havia mais uma coisa.
“E também isso, olha.”
Fiquei atento quando Ana Lúcia me disse: “Sabe, eu me sentia solitária. Eu sempre fui sensível. Meio romântica. Pra você ver, eu conheci um cara nessa festa, um cara bonitinho, alto, robusto. Nós transamos por umas horas, parecia que eu tinha passado quase a noite inteira com ele. Mas no dia seguinte acordei meio deprimida. Ele ficava sem assunto, intimidado. Despediu de mim com um beijo no rosto.”.
Verne veste a cadeira com o casaco de cor creme que o vinha protegendo do frio impiedoso lá fora. Senta-se em frente ao amigo, que chama o garçom pedindo mais um chope. Oi! Amigo! Mais um aqui…
“E esse puta frio, hein, velho?”, esfregando as mãos.
“Pois é. Parece que agora é pra valer.”
O primeiro motivo de conversa. Mas Danilo trouxe algo, porque Danilo sempre trazia algo, ainda que não trouxesse nada em seus bolsos. Anseia por mostrar ao amigo, seu único amigo, pelo que se lembra, uns papéis secretos que traz desta vez.
“Olha, eu queria que você desse uma olhada nisso. Isso aqui…”
Verne toma o papel e ri.
“Lá vem o filósofo. O filósofo na hora errada. Acabou de pedir um chope e já vem trazendo coisas… Filósofo das horas erradas.”
As voltas que o mundo dá, era o que diziam os antigos. Incrível constatar que, a esta altura da vida, é o Verne quem o ironiza, com sua simpatia à prova de qualquer suspeita. Impossível se incomodar com qualquer brincadeira que ele faça, sempre pontuada pela simplicidade, pela ternura, pela indisfarçável e natural ingenuidade que o mantém impregnado por completo.
Val. Pensei que pudesse salvá-lo também…
Verne termina de ler, mas não tira os olhos do papel.
“Era isso que queria me mostrar?”
Danilo silencia, pensa em não dizer nada antes de articular claramente o que pretende dizer de fato.
“Mais ou menos. Na verdade, eu queria te contar de umas outras coisas. Coisas antigas e novas, que têm me estrangulado um pouco, que têm me entristecido um pouco. Na memória e também agora, nesses dias, nesse inverno e…”
“Mmmm! Delícia esse chopinho. Não tem inverno que mude isso, hein? Mas fala. O que foi?”
“Estou escrevendo uns textos assim. Sobre nós, sobre nossos amigos. Sobre mim, sobre algumas coisas que eu vivi já faz tempo. E que me incomodam até hoje.”
“Até hoje?”, Verne sorri. “Mas… É sério? Pensou numa terapia, alguma coisa assim? Pode ser bom.”
“Não deveria ser sério. Mas parece que é. Não é genérico, é um ponto específico, sabe? Uma só dessas coisas é que me perturba até hoje. Uma só. Me deixa inquieto, me deixa…”
“Puxa, mas agora que você encontrou uma menina legal, que você está assim… apaixonado, não é? Ahahah…”
“É… É. Mas é por isso mesmo. Uma coisa está relacionada com a outra, entende? É por isso mesmo.”
“Tudo bem, então. Estou ouvindo.”
“Não, mas eu não quero contar assim. Queria te trazer uns escritos desse tipo, queria te mostrar umas ideias, aos poucos, sabe? Coisas que você vai reconhecer, lembrar, tenho certeza.”
“Ah, que bom alguém ainda se lembrar de nós, digo, de nós lá, naquele tempo. É isso que você está fazendo, velho, escrevendo a nossa história?”
“Não. É. Mais ou menos. Mas é. Mais ou menos isso. É sim, de certa forma. De uma forma que não é só contar. Escrevendo, a gente pode subverter o tempo, a gente pode inverter a ordem das coisas. A gente pode até alterar o passado.”
“É, eu lembro de você dizer essas coisas. Que a vida era uma linha reta, sem volta. E que a literatura era a única coisa que podia… que podia…”
“… tornar tudo sinuoso. Disforme. Interessante. Mesmo que se confunda com a mentira. Na literatura, a mentira se chama ficção, você sabe. Não posso negar que acho isso tudo muito lindo. Isso me encanta demais. Não sei como só eu posso gostar disso. Mas não importa. Com a escrita, posso fazer você chegar aqui muitas vezes, posso fazer você colocar seu casaco aí nessa cadeira muitas vezes, falar do frio de muitas maneiras, ler esse papel que eu trouxe e depois não ter lido, pegar de novo esse mesmo papel, que agora é outro, pela primeira vez. Mas na vida aqui fora, tudo segue em linha reta, é claro. O que aconteceu, está acontecido. E é isso que… É justamente isso que…”
“Você quer me contar alguma coisa, Danilo. Vamos lá, homem, medo do quê? Agora fiquei curioso.”
“Então, olha… Não é medo. Eu queria que você, antes de tudo, lesse isso aqui…”, tira do bolso um papel, entrega a Verne, que o desdobra facilmente.
Não existe a sabedoria. Nenhuma sabedoria. O que existe é a nossa natureza. Alguém que pensa ter encontrado a sabedoria apenas conseguiu algo que o adequasse à sua natureza ou que o ajudasse a reprimi-la de modo conveniente. Mas minha natureza tenta-me a dizer. Força-me a dizer. Realiza-se, quando diz. Portanto: viver minha natureza. Algo me diz que devo viver minha natureza. A minha natureza me diz isso.
“Era isso que queria me mostrar? E o que era sobre nós?”
“Ah, sim. Nada é mais antigo. As notícias se espalham. Hoje, principalmente. Em nosso tempo, nosso famoso século, nossos anos oitenta, não é? Dizemos nosso, nosso, nosso, como se tudo fosse nosso, como se o tempo fosse nosso…”
“Você diz isso.”
“Em pouco tempo, mais uns anos talvez, o mundo todo vai estar ligado de uma maneira muito pior, pode apostar. Vai ser muito pior mesmo, muito mais do que hoje. As pessoas vão poder se ver e se falar o tempo todo.”
“Ridículo. Isso nunca vai acontecer. Seria horrível. Ninguém vai querer isso.”
Valdinei maquinava algo para comentar a previsão, a absurda tendência, enfim, o caso todo. Verne não se importava muito com as teorias do Souto, parecia distraído. Morghini resmungou um puta-que-o-pariu ao jeito dele, que, dependendo do caso, podia significar: “Parem com essa besteirada inútil!” ou “Puxa, vocês conseguem mesmo estragar a noite.”.
Ainda entre os lençóis, Liana criticava a necessidade de muitas pessoas levarem a sério coisas como signos, horóscopos, mapas astrais, num tempo em que tudo isso praticamente havia caído por terra para sempre. Danilo se sentia feliz porque ela era inteligente e lúcida. Então, ela falou algo sobre “as fatias do tempo” e que quando Einstein…
Einstein?! Opa, agora era preciso ficar atento. Tudo o que envolve a palavra Einstein merece cuidado em dobro que é para a gente não cair em ciladas, para não cometer gafes, para não passar vergonha, para não iniciar discussões sem fim sobre universo, tempo, espaço, matéria, inexistência de deuses e despropósito cósmico.
Depois de ter-lhe contado sobre como deixara o corpo de Ana Lúcia nos arredores da faculdade, Liana disparou:
“Mas… Mas as coisas não estão… Não estão… se casando, se encaixando. Como vou dizer… ?”
“O que não está se encaixando? Como assim? O que você não está entendendo?”
“Você prestou depoimento no dia seguinte. Como eles sabiam? Ninguém sabia de nada até aí. Quando o corpo foi encontrado? Como eles sabiam?”
“Quer mesmo ouvir? Você quer mesmo que eu comece tudo de novo?”
“Não seja tonto. Claro que não. Outra coisa, que me chamou a atenção: quando você fala nas suas… namoradinhas. Eu entendo que você já tinha muita vivência quando saiu com a Ana Lúcia, e você era muito novo. Então, alguma coisa está errada aí, nessa cronologia toda.”
“Cronologia? Olha que palavra você está usando pra falar da minha vida…”
“Não quero ouvir essas piadinhas agora.”
“Pode ser que eu tenha contado fora de sequência, e daí? Você não entendeu direito… O que foi? Liana, o que foi?”
“Você mentiu. Você está mentindo pra mim”, vestindo a blusa aos poucos, descendo-a pelo corpo, contorcendo os ombros e os braços. “Você mentiu. Não é? E agora?”
“Mas… Mas… Por que menti? Como sabe se eu menti? Eu lhe disse que tenho os recortes guardados comigo, não disse?”
“Não faz diferença isso dos recortes, não quero mais saber disso. Não sei mais. Você disse que tinha lido no jornal. Mas estava com ela”, subindo a saia, que ajustou facilmente. “Disse que a arma era dela. E a arma era sua. Será que ela fez mesmo tudo sozinha?”
“Há!”, ele indignado. “Não. Não. Eu não estou ouvindo isso.”
“Não quer ouvir. É diferente. Ela se matou com um tiro na boca. E também com um tiro no peito. O que aconteceu? Os jornais distorceram tudo?”
“Não, eu não acredito que você…”
“Por que não devo me sentir insegura? Me diga. Por que eu devo acreditar?”, ela agora parece tremer um pouco. Senta-se na cama, estica um braço e alcança o par de sandálias, umas sandálias negras, poucas tiras finas. Calça as duas quase ao mesmo tempo, então começa a ajustar uma fivelinha mínima na lateral de uma delas.
Verne baixa os papéis sobre a mesa.
“Era isso que queria me mostrar?”
Danilo silencia, pensa em não dizer nada antes de articular claramente o que pretende dizer de fato.
“Por enquanto, sim. E então? Fala alguma coisa, velho. Qualquer coisa.”
“Você escreve muito sobre ela.”
Ah, essa não. Eu mereço. Outro golpe da inocência, outro gole de chope. Vamos lá, Verne, me ajude.
“Sobre ela quem? Sobre a Ana Lúcia?”
“Não. Sobre a Liana, claro. E acho que ela não vai gostar de ver isso, vai? Ela sabe?”
“Não”, diz Danilo num susto, emitindo o monossílabo quase imediatamente após a fala de Verne, quase latindo. “Não. Não, ela não sabe. Não sei se ela deve saber. Posso mudar o nome dela, é fácil. Posso fazer dela outra pessoa, com alguma característica inventada, que não seja própria dela, tanto faz. Mas ela não sabe.”
“Ah, mas não dá pra disfarçar tanto, será?”
“Não sei”, pegando de volta os papéis. “Dá sim. Eu invento o que eu quiser. Mas, me fala aí. E você, como vão as coisas? O trabalho, as paqueras…?”
“Ahahah… Te conto uma que você vai gostar, olha só… Mmmm! Mas esse chope está tudo de bom mesmo, velho. Vamos mais dois?”
51. Arranjo para impedir Ana Lúcia – sequência
49. Trogloditas bem-falantes – anterior
Imagem: Richard Estes. Café expresso. 1975.
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