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Estudo com cristais. Clara (2/13)
Cabe a nós agora recriar nossa parcela de noite, a noite que perpassa o mundo.
O odor característico que emana dos bastidores, tenho certeza, para sempre há de tornar-me a esta furtiva impressão de clandestinidade. Clara fecha a última porta. Acende uma luz tênue que mais gera penumbra. O teatro deserto (todos se foram), às escuras. Não me importam de fato sua dança, Clara, sua carreira… Quero o que é você e o que possa ser eu, até onde somos.
A cada ensaio mudam os aromas que exala, transmuda-os quem sabe a alquimia planejada de que colônias e cremes. Limas maduras, flor-de-enxofre. Alfazema queimada, almíscar, canela, arca de algas. Feno sob a chuva, chuva sobre os pátios. Cravinas, alcânfora. E mais que ainda desafia as palavras, não se permite identificar e penetra com a mesma intensidade. A memória usa associar uma sensação e um fato, a um momento, a uma aventura. As aventuras se vão, as sensações se repetem. Muitas vezes insignificantes a outrem, sugerem-nos o que na verdade fomos e somos. Não os eventos nos remetem a nós mesmos. Mas sim o aroma, a última centelha de uma frustração que quase torna em palavras. Para uns, as palavras. Para outros, a cor, uma canção. Cada um vivencia, à sua maneira, os signos. Para mim, os aromas, Clara.
Os carrilhões da catedral mais próxima situam-nos à meia-noite. Daqui em diante, estaremos à mercê de nossos anseios, no espaço forjado por nossa cumplicidade. Esta noite que invade o teatro até nossa porta não traz mais do que um silêncio sem dramas, sem apoteoses ou grandes fogos brancos. Cabe a nós agora recriar nossa parcela de noite, a noite que perpassa o mundo. Fogos. Silêncio. Olhos negros.
Sento-me na caixa de madeira, vejo Clara por inteiro. De longe, cintila seu brinco em meia-lua – crescente ou minguante? O suéter cinzento em malha de lã, mangas coladas como braceletes ao antebraço, depois soltas e infladas como todo o suéter que faz perder o contorno dos seios e que ela, erguendo os braços, pedirá que eu ajude a despir. Malha justa descendo até pouco abaixo dos joelhos, a calça branca é só o que destoa da noite, o cinza do suéter, o brinco metálico. Ela brinca, chamando-me acomodado. Pede que eu despreze meu cansaço, meu dia exaurido, assim como ela aos ensaios, porque a noite não é uma criança, como repetem os ingênuos, nós talvez sim.
“Os relógios e os sinos tentam nos confundir”, diz Clara. “A noite está em nós. Começa quando começamos. Quase não existe.”
Avança uma perna em minha direção, um movimento de dança, pousa um pé atrevido sobre a caixa, entre minhas coxas. Sorri com o canto dos lábios, quer que eu adivinhe o próximo passo. Desato sua sapatilha negra, trançada no tornozelo, uma serpente tentando subir pela perna. Imune à simetria dos gestos e sua sequência mais provável, Clara recolhe a perna, põe-se de pé à minha frente, quase roçando, com seu ventre, meu rosto, adivinho. Afago e prendo entre minhas mãos seus quadris, do alto das coxas à cintura oculta pelo suéter, onde encontro o elástico da calça que desce facilmente, ainda que, até então, simulasse pressão e aderência. Livrando-a da segunda sapatilha, gesto que repete o primeiro, prendo, por minha vez, seu tornozelo entre as serpentes de minha mão. Junta-se a ela sua gêmea esquerda, sentem sob as palmas a pele lisa dessas pernas que percorrem, músculos de consistência exata ao que anseiam meus dedos, em sua pressão também medida, suficiente para desvendá-los, a esses músculos que sobem e se desenvolvem harmoniosamente entre tendões, dando lugar à agradável ossatura dos joelhos, para então ressurgirem em sua plenitude na coxa portentosa, mais presente que a noite. Sem o suéter, os seios oscilam como a mostrarem-se vivos e participantes. Em um deles, de par com o mamilo e em sua órbita, onde se faz mais delicada em Clara a pele, a estrela tatuada.
Sim, o calor. A forma. O corpo. Dentes que amo percorrer com a língua, introduzida em sua boca, saliva de nos possuirmos, lábios outra vez dentes. Seu corpo torneado, suas costas e cintura rígidas, músculos tão bem distribuídos, nádegas consistentes, levariam um homem não à loucura, mas à completa felicidade física.
E dizem os homens, grosseiramente, que as comem, quando na verdade vocês estreitam os lábios, sugam-nos para dentro, nutrem-se, Clara. Entre as maneiras de nos unirmos, de me sentir seguro e agasalhado por sua boca palpitante, a garganta sem fim, umedecida e gosmenta de inconcebíveis línguas de fogo, esta em que se posiciona apoiada na caixa, de costas para mim. Prendo-a pela cintura, conduzindo-a em seus movimentos, seu traseiro pressionando-me o ventre. Amo o suor em suas costas, o brilho que se delineia e realça o relevo de cada músculo, desde os escalenos, os claviculares, descendo entre outros até a curva, agora a mais acentuada, que lhe separa das costas as nádegas. No auge de seu prazer e a um passo do delírio, Clara ergue-se um tanto mais, retorcendo o corpo desde as ancas até finalmente deixar-se curvada sobre a caixa, vencida, agora que nenhum de nós dispõe de mais forças para viver o que restou da noite. Mas eu a abraço novamente, agora com mais força, outra força, essa que me vem do fundo, de longe, e me atravessa os músculos, passa por eles.
“Clara, sei que você é real.”
Ela ri: “Que tolice é essa?”.
“Quando sairmos daqui, saberei que isto, este encontro, foi outro sonho de tempo, outro momento tragado como todos.”
Beija-me. “Deixa disso. Claro que somos reais. Como poderíamos não ser?”
“Poderíamos não ser.”
Os olhos negros brilham por um momento.
“Nesse caso, não estaríamos aqui.”
“Sim, mas… Parece incrível que, para além deste teatro, se estenda todo um mundo superpovoado de seres entre o dia e a noite, entre a vida e seu avesso, alguns se atormentando com isso, outros apenas passando. De qualquer forma, tudo caindo, sempre mais, ao plano do esquecimento.”
“Vamos mudar de assunto, sim? Isso já começa a me deprimir.”
Guardo meu silêncio, não quero incomodá-la. Gostaria também de não sentir assim como sinto, entre lapsos de razão e intuição, sempre de maneira imprevisível, o que parece aos outros tão simples, claro e natural: o fabuloso universo.
Gosto de vê-la nua, Clara, bem mais do que você gosta de se mostrar. Vista de meu ângulo, mais alta e elegante, movendo-se ao redor, como um felino da sombra, parece emergir da noite e da clandestinidade. Seus amigos e meus amigos dizem que você não é para mim. Talvez porque você seja negra.
Lisette Maris em seu endereço de inverno
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Imagem: Tina Bluefield. Luz noturna.
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