Office in a Small City por Edward Hopper

Lisette Maris. Sinais sutis e sinais gritantes (12/15)

Tudo que eu queria esta noite era contar a ele. Agora eu o sinto como um espião disfarçado entre os mortos.
Um animal mitológico que guarda em seu íntimo uma brecha entre as últimas árvores do inverno.

Piet Mondrian. Natureza morta com pote de gengibre. 1912Peço ao gigante Diego que a chame na barraca.

“Então? Parece que veio correndo, que foi? Quer um pouco de chá?”

Senta-se ao meu lado, a certa distância da fogueira, toma minhas mãos entre as suas. Quero que saiba: algo está acontecendo em minha vida. Quase não me importo mais com o inverno. Dalma ouve minha confissão nervosa. Muitas vezes me esqueço de que ela também se encanta com meus pequenos tesouros, afinal seus olhos iluminam-se conforme viajo na memória, afinal, de algum modo, assemelham-se aos meus os olhos de minha irmã, Dalma, minha chance suspensa, minha enevoada esperança, à frente daqueles que também me observam e têm algo do que não espera calar em mim. Diego, o guardião do silêncio. Damares, minha tempestade.

“Por que ele não chegou ainda?”, pergunto ao casal de viciados em boas maneiras.

“Então não soube?”, adianta-se a mulher, antes que seu marido tente impedi-la, com um gesto sutil. Ao meu lado, no sofá, parecem mais covardes.

“Deixe disso!”, ela reage. “Já é um rapaz!”

“Pensamos que sua mãe o houvesse participado. Nossa sessão será hoje em homenagem a ele. Em sua memória.”

“Não, eu não sabia. Eu não sabia mesmo. Por que ela não… Será que ela se esqueceu?”

Um dos membros mais entusiasmados chama-nos a todos com palmas, como se fôssemos cinquenta anos mais jovens do que ele. Minha mãe, sem que eu a perceba, chega-me pelas costas.

“Vamos, tire esse gorro!”

Não só um aparelho completo, também peças avulsas e até cinzeiros, desta vez limpos. As mesmas evocações produzem movimentos desencontrados em algumas peças. Os cinzeiros são os primeiros a escapar da mesa rumo ao lustre que os retém em sua órbita. Logo os pires os acompanham. Xícaras seguidas de um bule baixo. Uma travessa oval e uma galinha de porcelana que adorna a estante de mamãe – e não parecia estar nos planos dos estudiosos de Allen. Finalmente os pratos, um a um, dos menores aos maiores, juntam-se ao carrossel flutuante, desde as primeiras vibrações que os arrancam à inércia até as pistas invisíveis que os põem também a circular cada vez mais alto. Forma-se, no espaço da sala, um conjunto de órbitas paralelas e também de gravitação concêntrica, por vezes harmônicas, por vezes assimétricas, umas largas e baixas, outras descrevendo um círculo majestoso rente ao teto, para estupefação geral e histeria de alguns. Maravilhado com o espetáculo dos pratos, abaixo-me às vezes, para escapar a um cinzeiro perdido, a um pires errante ou à destoante galinha, que ainda procura seu rumo no espaço. Minha mãe não se contém e agita-me pelos ombros.

“Os pratos giram! Veja como giram! Admita, não há como negar!”

Livro-me dela com um palavrão que mal percebe, porque agora se encontra quase em transe, presa de um delírio idiota que a cega ainda mais. Penso no que o viúvo diria se estivesse aqui. Pouco me importa que girem e flutuem. Esses objetos e outros confusos sinais nada significam para mim. Tudo o que eu queria esta noite era contar a ele. Agora eu o sinto como um espião disfarçado entre os mortos. Um animal mitológico que guarda em seu íntimo uma brecha entre as últimas árvores do inverno – agora que já não posso confessar-me a ele e dar-lhe Damares, agora que me sinto pronto a sonhar outra vez com a conspiração do amor e já não posso falar a seus olhos estreitos, a sua visão secreta, agora não mais.

Lisette Maris em seu endereço de inverno (12/15)

Lisette Maris 13. Um silêncio de grandes ventos – próximo

Lisette Maris 11. A sala (quase) secreta das almofadas – anterior

Guia de leitura

Imagem: Piet Mondrian. Natureza morta com pote de gengibre. 1912.

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