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Lisette Maris. Sinais sutis e sinais gritantes (12/15)
Um animal mitológico que guarda em seu íntimo uma brecha entre as últimas árvores do inverno.
Peço ao gigante Diego que a chame na barraca.
“Então? Parece que veio correndo, que foi? Quer um pouco de chá?”
Senta-se ao meu lado, a certa distância da fogueira, toma minhas mãos entre as suas. Quero que saiba: algo está acontecendo em minha vida. Quase não me importo mais com o inverno. Dalma ouve minha confissão nervosa. Muitas vezes me esqueço de que ela também se encanta com meus pequenos tesouros, afinal seus olhos iluminam-se conforme viajo na memória, afinal, de algum modo, assemelham-se aos meus os olhos de minha irmã, Dalma, minha chance suspensa, minha enevoada esperança, à frente daqueles que também me observam e têm algo do que não espera calar em mim. Diego, o guardião do silêncio. Damares, minha tempestade.
“Por que ele não chegou ainda?”, pergunto ao casal de viciados em boas maneiras.
“Então não soube?”, adianta-se a mulher, antes que seu marido tente impedi-la, com um gesto sutil. Ao meu lado, no sofá, parecem mais covardes.
“Deixe disso!”, ela reage. “Já é um rapaz!”
“Pensamos que sua mãe o houvesse participado. Nossa sessão será hoje em homenagem a ele. Em sua memória.”
“Não, eu não sabia. Eu não sabia mesmo. Por que ela não… Será que ela se esqueceu?”
Um dos membros mais entusiasmados chama-nos a todos com palmas, como se fôssemos cinquenta anos mais jovens do que ele. Minha mãe, sem que eu a perceba, chega-me pelas costas.
“Vamos, tire esse gorro!”
Não só um aparelho completo, também peças avulsas e até cinzeiros, desta vez limpos. As mesmas evocações produzem movimentos desencontrados em algumas peças. Os cinzeiros são os primeiros a escapar da mesa rumo ao lustre que os retém em sua órbita. Logo os pires os acompanham. Xícaras seguidas de um bule baixo. Uma travessa oval e uma galinha de porcelana que adorna a estante de mamãe – e não parecia estar nos planos dos estudiosos de Allen. Finalmente os pratos, um a um, dos menores aos maiores, juntam-se ao carrossel flutuante, desde as primeiras vibrações que os arrancam à inércia até as pistas invisíveis que os põem também a circular cada vez mais alto. Forma-se, no espaço da sala, um conjunto de órbitas paralelas e também de gravitação concêntrica, por vezes harmônicas, por vezes assimétricas, umas largas e baixas, outras descrevendo um círculo majestoso rente ao teto, para estupefação geral e histeria de alguns. Maravilhado com o espetáculo dos pratos, abaixo-me às vezes, para escapar a um cinzeiro perdido, a um pires errante ou à destoante galinha, que ainda procura seu rumo no espaço. Minha mãe não se contém e agita-me pelos ombros.
“Os pratos giram! Veja como giram! Admita, não há como negar!”
Livro-me dela com um palavrão que mal percebe, porque agora se encontra quase em transe, presa de um delírio idiota que a cega ainda mais. Penso no que o viúvo diria se estivesse aqui. Pouco me importa que girem e flutuem. Esses objetos e outros confusos sinais nada significam para mim. Tudo o que eu queria esta noite era contar a ele. Agora eu o sinto como um espião disfarçado entre os mortos. Um animal mitológico que guarda em seu íntimo uma brecha entre as últimas árvores do inverno – agora que já não posso confessar-me a ele e dar-lhe Damares, agora que me sinto pronto a sonhar outra vez com a conspiração do amor e já não posso falar a seus olhos estreitos, a sua visão secreta, agora não mais.
Lisette Maris em seu endereço de inverno (12/15)
Lisette Maris 13. Um silêncio de grandes ventos – próximo
Lisette Maris 11. A sala (quase) secreta das almofadas – anterior
Imagem: Piet Mondrian. Natureza morta com pote de gengibre. 1912.
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