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A cor intensa que nasce e morre com os humanos
O tempo esmagará os discos rígidos. Não haverá nada escrito nas nuvens.
Dorme. Tenta dormir, por enquanto. Acompanhado, como sempre, como se dá com todos, de imagens e sons outra vez imaginados, a conhecida miscelânea que se vai confundindo nas fronteiras conscientes, após uma sequência de pensamentos identificáveis que vão se tornando absurdos, conduzindo-o sem defesa a situações estranhas, até que o tempo certo o vença e ponha tudo a perder, como com o tempo todo acaba sendo, que também como sempre, como se dá com todos, o tempo certamente vencerá.
Recicla uma recordação recente, repassa o que mais ou menos havia dito a Liana, uns dias antes, que algumas imagens nos marcam, sem dúvida. Que Ana Lúcia morta, jamais poderia esquecer. Esquecer, de certa forma, sim. Continuar vivendo, claro. Mas se alguém o chamasse à roda com uma imagem do passado, era essa a que ele cantaria em primeiro lugar, que dentro dela, dentro dela, mora um anjo, que roubou, que manchou seu coração. Reencontra, quase perfeitamente, a penumbra suave, as variações de sombra em todo o quarto, um quarto muito simples, inadequado ao que merecia ter sido sua primeira e única noite com ela. Mais inadequado ainda para sustentar a tragédia rompendo do nada. O instante surpreendente, estilhaçando o espaço, fracionando os segundos, ecoando medonho entre os minutos até então esquecidos, tendo ao fundo o relógio invisível da noite, que, apesar de anunciar as horas, lembrando a todos que o planeta gira, também sabe silenciar frente aos grandes ruídos. A nudez mortal da ninfa sobre a cama. O lençol bege ou creme ou palha (ele nunca fez muita distinção desses tons), sangue – de um vermelho sempre especial, que só pode ser essa cor bonita e tão familiar, essa cor que escorre por todos os mapas da história, a cor intensa que nasce e morre com os humanos. Naqueles minutos todos que dividiu com ela, naquela hora e pouco em que esteve com ela, acostumou-se a vê-la nua, acostumou-se à nudez dessa garota até então impossível, sim, acostumou-se muito facilmente à nudez dessa garota impossível. Mas não ao sangue que a suja, que mancha seu corpo agora. Agora? Não, não. Em um passado extinto, como em todos os passados extintos. Até hoje, Danilo se recusa a acreditar que o passado vive. Porque é dia outra vez, porque o planeta roda sozinho, sem nosso consentimento. Porque é noite outra vez. Porque não podemos evitar isso, os dias e as noites, porque é entre um e outro que tudo acontece, os amores e os crimes. (Liana ouviu isso tudo com redobrada e arrepiante atenção.)
Danilo lia. Artigo sobre o Brasil colonial. Que belo texto, hein? Ele se interessa por tudo, como é que pode? O que acha disso? Você se julga meio velho aos quarenta, não é? E ele tinha vinte e cinco anos em 1680. Que coisa estranha ver datas assim. Todas as juventudes desaparecem no passado. Sim, mas é óbvio. Agindo sempre (ou apenas pensando) como se só você não soubesse disso ainda. Sim, muitas vezes, para ele, pensamentos conhecidos por todos pareciam dar-se pela primeira vez no mundo. (Estava lendo sobre Zumbi dos Palmares, isso de ter vinte e cinco anos.) Lembra de um presidente norte-americano ter dito que os livros eram importantes para você saber que os seus pensamentos, aparentemente novos e originais, já foram pensados por outros. Mas é lendo que ele se distrai um pouco, e se encontra um pouco, e se direciona um pouco, e aprende um pouco, e… – quantos pretextos precisa inventar para si mesmo, só porque tem consciência de uma obsessão.
Mas agora a leitura não o distrai como antes. Liana é que o distrai como nunca. Ele procura nela uma pequena cicatriz, uma pequena tatuagem. Fez isso em todos os encontros, sem que ela percebesse. A tatuagem, nem tanto. Mas por que gostaria de ver nela uma cicatriz? Porque trazia uma história? Porque contava uma dor? Porque ela lhe pareceria mais humana, menos intacta? Menos estudiosa, mais travessa? Menos doutora, mais menina? Danilo pensa agora que alguns de seus relacionamentos anteriores, especialmente o de maior duração, haviam começado como um conto de fadas e se tornado, em pouco tempo, como gostava de dizer nas rodas de amigos, um conto de fodas. Ao conhecer Liana, voltou a recordar coisas de sombra, coisas de árvores escuras e beijos com coisas de solidão… – sem entender muito bem por que ela desperta nele essas tantas coisas, antes mesmo que começasse a perguntar sobre Ana Lúcia, pois foi justamente por isso, por essas tantas coisas que Liana, sem saber, desperta nele é que havia começado a contar da antiga Ana, da antiga ninfa, da antiga morta. E então, a partir de então, e então foi que… Foi então que passou a procurar em Liana, em toda a extensão nova de seu corpo, alguma pequena coisa que o encantasse, algum discreto sinal, alguma consoladora cicatriz.
Liana funciona hoje como um marco, um ponto demarcatório, forçando-o a uma revisão de sua vida, sem que tenha procurado por isso. Ao conhecer Liana, portanto… E tudo por tão pouco. E não era nada, inicialmente. E tudo tão rápido. O primeiro abraço com o pretexto mais tolo do mundo, é o seu aniversário? Ah, eu não sabia, parabéns então, brigada, muita saúde, felicidades, brigada mesmo, o corpo rígido dela, os seios pequenos, os seios ainda firmes dela – diferentes daqueles que ele tanto conhecia, os de Daniela, a duradoura –, de uma consistência que, por si só, teria feito disparar seu coração, como de fato aconteceu, aqui nada metaforicamente. Sente, como há muito tempo não se lembra, a força dessa atração física, a velha e boa atração física, a mais pura de todas as sensações humanas, antes que nós próprios comecemos a pintá-la de tédio. Parecia que, pela primeira vez, abraçava uma mulher! Tomara que ela não tenha percebido isso. Se percebeu, não me disse nada até hoje – que eu a apertei tão intensamente, tão gostosamente, como se quisesse desdobrar aqueles dois segundos e meio (que eu não cronometrei, é claro, mas que consigo calcular hoje, tique e taque e tique…) em um tempo sem fim, após um sequestro digno dos deuses mais excitados, que, do alto de sua montanha sagrada, desciam para raptar as jovens que, só por serem como eram, os faziam incontroláveis.
Mas por que fazer de tão pouco algo tão grande? Como isso tanto lhe falta? Por que isso tanto lhe falta? Por que sentir um corpo e uns seios, imaginando possuir essa mulher como um deus inflamado, é tão importante a ponto de alterar o rumo de sua vida? Ele admite, secreta e honestamente: Liana, sem atrativos, não lhe interessaria. Liana, de aparência desagradável e corpo flácido, não lhe interessaria. Liana, morta, não lhe interessaria. A mulher faz o homem distrair-se da guerra, e isso é tão antigo quanto a primeira guerra do mundo. Por isso, os cavaleiros todos, e os marinheiros, enfim, todos os heróis da ficção e da realidade são praticamente proibidos de se envolverem com mulheres até que termine sua missão, sua tarefa, ou seja lá a porcaria que for. Depois, vem a recompensa: uma mulher! Até Vasco da Gama ganhou uma ilha cheia de ninfas. Não há disfarces. Os autores se esmeram em deixar isto claro: que a recompensa do guerreiro é sempre uma mulher. Por bem ou por mal. Seja a princesa prometida em núpcias, seja a vítima da cidade sitiada, assediada à força. Que tempos, não?
E Danilo, a um tempo grato, a um tempo preocupado, já se distrai há mais de um mês com sua nova namorada. Ele não quer saber por que isso é assim, mas desconfia. Quando nos apaixonamos, as coisas não encontram explicações razoáveis. Tem vontade de parar de trabalhar. Isso mesmo, largar tudo. Ficar com ela naquele chalé da praia distante, sim, a fantasia de sempre, foda-se essa trabalheira toda, quero ficar com ela noite e dia – tais imagens voltam naturalmente e se desdobram em diálogos e cenas possíveis quando alguém nos atrai com convicção. Isso é desviar-se da guerra. E é bom. Na sexta, no sábado – fora isso, fica difícil sair, não é mesmo? Celular, conexões virtuais, mas isso só atende a carências menores, sinais de que estão vivos e pensando um no outro, atenciosos um com o outro, preocupados um com o outro, preocupados. (Ela, mais do que ele?)
Primeira vez no motel: nada como sermos adultos, sem muitas complicações com essas primeiras investidas. As complicações continuam em outra frequência de onda, em outra faixa invisível que não depende nada do lugar escolhido. Ao fim do segundo encontro íntimo, nesse recinto quase à prova de som, pouco antes de irem embora, enquanto Liana se vestia, enquanto ela se curvava e se esticava para alcançar uma última peça de roupa, dobrando-se, por acaso, bem à frente dele, Danilo deu-lhe um tapa na bunda, uma palmada de mão aberta, firme mas não muito forte, quase carinhosa, ele diria, que ela fingiu não perceber. Sentiu-se bem com esse improviso inocente, um menino feliz. Mas de onde vinha esse tapa? Até isso era motivo de tentar compreender as coisas, ele que não parava de pensar. Quis repetir o tapa, mas o momento havia passado. Ela se deslocava pela suíte, procurando os brincos ou qualquer outro acessório, sobre a bancada de alvenaria. Certo, ele não repetiu o tapa, não nessa noite, mas repetiu a pergunta a si mesmo mais tarde. De onde vinha esse tapa? Tão instintivo, tão espontâneo, tão automático que parecia ter se repetido por milhões de anos, que parecia estar vivo em suas instruções genéticas, e não podia ser diferente: ele tinha, de alguma maneira, que lhe dar aquele tapa, daquela maneira, naquele momento, com a mão daquele jeito, como se marcasse Liana, sua posse, apesar de isso soar, aos vigilantes da virtude e à polícia do bem, como uma grande heresia ou uma grande bobagem. Não, não, mas que machismo horrível! Danilo, você nem parece ser o cara evoluído que alguns dizem que é. Evoluído, é? Mas também não se trata disso. Não, não se trata disso. Mas, sim, talvez evoluído o bastante para considerar a si mesmo com certa coragem. O fato é que seus instintos existem – e se manifestam naturalmente. O fato é que ele deseja compreendê-los. O fato é que ele se reconhece um homem questionador e atento a tudo que possa trair sua racionalidade, mesmo um mínimo gesto rápido, um gesto que trai sua intenção neutra de nem mesmo pretender realizá-lo, o gesto que o trai e o revela, atento ao animalzinho gentil que lhe passa à frente das coisas práticas, à frente dos objetivos conscientes, essa garota curvada à sua frente, à frente de sua razão, ele quase a responsabiliza, quase culpa Liana por isso. O fato é que ele é ainda um homem das cavernas. E saliva de vontades.
No encontro seguinte, Liana sorriu ao levar o tapa, cada vez mais forte em seu traseiro, divertida e assustada. “Au!” Brincou de dar o troco, mão retesada no ar. No fundo, ele esperava mesmo que ela sorrisse. Era só uma brincadeira. Com o tempo, já não dependia do momento em que ela se curvasse ou se distraísse: quando entendia oportuno, sendo a posição do corpo favorável e o humor dentro da frequência ondulatória da normalidade, aplicava-lhe uma ou outra palmada na bundinha, como em uma menina travessa. “Bobo, sai com essa mão, não te dei essa liberdade…” Não? Por que aceita isso? Sabe que é uma brincadeira, claro. Mas, mesmo assim… Bem, não podia dissociar um do outro, o homem da mulher, o macho da fêmea: se o instinto existe em um, deve ter sua contrapartida no outro. Se eu gosto de sentá-la ao colo, sobre minhas pernas, é porque ela também deve gostar de se sentar ao colo, sobre minhas pernas. Ou nada disso daria certo. Afinal, esses tantos milhões de anos foram atravessados por machos e fêmeas se aceitando, se rejeitando, por vezes se destruindo, mas, de alguma forma, forçando ao equilíbrio. Para ele, era um momento excitante, misteriosamente excitante, a ponto de não se importar muito com a consequência, com a reação dela, se houvesse, mas não havia, a não ser como cúmplice disfarçada da brincadeira inusitada. Porque, na prática, era só uma brincadeira, nada mais. “Vem cá, vem.” “Ai, me larga”, ela sorria. “Da outra vez doeu…” Uma brincadeira emergindo das instruções genéticas, incubada durante milênios. Uma brincadeira que teria começado muito tempo antes do nascimento de cada um deles, vinda de longe. Das profundezas do Plistoceno.
Liana se mostra cada vez mais… magnética – eis a palavra, retirada dos meios científicos, que ocorre a Dom Danilo, esse trovador fora de época, esse artista da palavra, esse diletante em tudo. Ele não só a deseja num crescendo (também se atrai por música, nem diga) como faz planos mentais de ficar com ela, morar com ela, com receio e vergonha de ser descoberto por isso. Com vergonha de suas vergonhas. É tão fácil escondê-las, basta não falar nelas. Quando se conhece uma pessoa nova, ela não sabe nada de nosso passado. E você está novo também, passado a limpo de todas as suas vergonhas até então. Olhe as pessoas se deslocando pelas ruas: quantas vergonhas em cada passado, em cada historinha de vida, pequenas e grandes, quantas vergonhas não acabaram de acontecer ainda, ou aconteceram há alguns minutos, há algumas horas, sob um desses rostos silenciosos e civilizados, quantas ainda irão acontecer no minuto seguinte, quando um desses cidadãos entrar em um escritório ou em uma clínica, ou encontrar, na mesma calçada, a pessoa que deveria ser a última das últimas a lhe aparecer nesse dia, alguém que parece ter vindo ao mundo só para lhe causar mais constrangimentos e piorar as vergonhas que, por si sós, já o assombram. Mundo pequeno, não? Não. Nunca o bastante.
De qualquer forma, Danilo brinca de simular outras cenas possíveis, das quais Liana pode participar também. Claro que ele pode imaginar facilmente os momentos da cerimônia que mais lhe interessam: “Você, José Danilo Mentoni Scribelli, aceita como sua legítima esposa Eliana Ap. Palma da Costa?”. (Ana Lúcia ficaria linda ali, com aquele sorriso espetacular que era o dela, imagine só, de noiva, enfeites nos cabelos presos, sapatos brancos…) “Para com essa bobagem, você sabe que eu não gosto de igrejas”, ela ri. “E meu nome não é Eliana.”
Liana não é linda como Ana Lúcia. Mas, pensando bem, é melhor não jogar fora nenhum vestígio de inteligência. Enquanto ele se distrai outra vez, e enquanto não percebe que se distrai, continua marcando livros com orelhas de capa e réguas de cartão, marcando papéis com a caneta, marcando Liana com palmadas. Nem sempre corre ao computador. Tem um tempo próprio de convivência com os papéis, uma necessidade. Mas claro que essa porcaria eletrônica serve muito bem a suas necessidades, serve muito bem mesmo. Telinha, digitação, ideias e infantilidades. Serve muito bem à maior parte de tudo o que rabisca ali, ao lixo limpo que nasce de sua mente e desaparece na escuridão asséptica dos circuitos invisíveis. E esse aparelho todo é menos impressionante quando movido a eletricidade, menos denso que os papéis, é um pouco vivo e vulnerável, consome energia, arquivo Word, to work, aardvark, back to work…. “É por isso que escrevo”, o romântico digita, na sequência. Certo, agora delete logo essa asneira. Imagine se é por isso! Claro que não. E claro que não tem esperanças de compreender essa coisa toda, que sempre exige palavras melhores do que expressões como “essa coisa toda”. É por isso que escrevo… Que cronista idiota e inútil. Relê, revisa. Saiu escravo, na tela. É por isso que escravo… Que sinistro associar isso de escrever à condição de escravo. O corretor automático do Word não diferencia uma coisa da outra, não sabe o que Danilo pensa, não sabe o que ninguém pensa, não sabe se ele é escravo ou não, e nunca vai saber. Também não sabe para que serve ele próprio, pois se os seus usuários também não sabem para que servem… Em frente. Registrar tudo em arquivos. Para quem, para quê? Pinturas nas cavernas, agora com precisão matemática. Cro-Magnon digital. O Plistoceno em nós. A necessidade do registro, os tapas marcando a fêmea. Gravar no disco rígido, disponibilizar em nuvem. A Terra gira, e um dia nem mesmo se chamará Terra. Serão outras línguas, outras palavras. A era geológica presente terá mais um nome no futuro. Todos os crimes irão prescrever. O tempo esmagará os discos rígidos. Não haverá nada escrito nas nuvens.
46. Deixando a fortaleza – sequência
44. Qualquer coisa triste é triste o bastante – anterior
Imagem: Todd Krasovetz. Fogos na Califórnia.
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Comentários
2 respostas para “A cor intensa que nasce e morre com os humanos”
Maris, muito obrigado pelas palavras. Fico honrado que tenha agradado a uma pessoa de seu nível e com sua sensibilidade. Grande abraço.
Caro Perce
Ainda não havia lido esse capítulo e falo capítulo porque vejo uma sequência dos anteriores…como você publica aos poucos não havia lido essa parte! Está brilhantemente escrito! Consegue nos prender e nos faz visualizar, refletir… Trabalha as palavras de uma maneira fantástica, o pensamento…
Lapida o texto maravilhosamente nos mantendo reféns de sua narrativa. Parabéns como sempre! Fantástico!
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