Seu carrinho está vazio no momento!
Qualquer coisa triste é triste o bastante
Agora é noite, porque o planeta fez outro giro sobre si mesmo.
Danilo escrevia. Uma atração muito forte pela palavra. Por signos linguísticos. Um fascínio por esses sinais carregando ideias, insinuações e até mesmo carregando o que não conseguem nunca significar. Isso se acumula nos livros, e eles se tornam uma segunda paixão, derivada dessa primeira. A dança das palavras. Maca (do taino hamaca). Tainos, indígenas das Antilhas, hoje extintos, sua língua deu origem ao crioulo haitiano. Muito bem. Maca. Cama. Quando a maca entra pela outra porta, ela se torna cama?
Ele não conta a ninguém que percorre, com uma alegria infantil e inútil, os dicionários. Não conta, para não pensarem que enlouqueceu. Não conta, porque tem vergonha de ser diferente da turma, porque, desde pequenos, temos que fazer parte da turma, e não é agora que ele irá decepcionar a todos, não é mesmo? E se pensarem que sou algum tipo de louco, podem pensar outras coisas bem piores sobre mim, sei muito bem disso. Mas seria preciso encontrar no budismo aquela força que o livrasse das provocações do Senhor dos Deveres Sociais, libertando-o da submissão ao julgamento alheio. Enquanto isso não acontece (Danilo não conhece ninguém, absolutamente ninguém, que tenha alcançado essa felicidade, a de libertar-se da opinião dos outros), ele se entrega secretamente a seus prazeres mundanos: textos, palavras, livros… Adora livros velhos.
Certa vez escreveu isto, tendo uma namoradinha como personagem, coitada: “Cheguei mesmo a impedir que ela se apoderasse de uns exemplares meio carcomidos, que poderiam destroçar-se de vez – porque eu guardava umas edições muito velhas, de um papel que teria sido branco noutro século, tão antigas que, ao lerem-se alguns de seus escritos em voz alta e com sincera boa vontade, seriam capazes de despertar uma múmia em outra parte do mundo.”. Ele nunca deixava que elas soubessem disso, claro. Muito menos sobre seu lado logomaníaco.
Ãatá, mas vejam só que espetáculo! Danilo sorri como se houvesse encontrado um diamante numa estradinha de sombras que atravessa o bosque.
ÃATÁ, s.f. Piroga indígena do Amazonas; canoa.
Nunca antes contou tantas vogais (por sinal, a mesma vogal) num vocábulo tão pequeno, puxa, tão pequeno. Essa palavra consta de um velho dicionário dos anos 1960, o Dicionário Escolar do Professor, prefaciado por Darcy Ribeiro, com “vozes” dos animais nas últimas páginas, que aparentemente só Danilo ainda tem em casa. (É claro que não, mas pensar assim o torna mais precioso – o dicionário, não ele, esse leitor-escritor, bem entendido). O Aurélio não a registra. O Houaiss também não. Nem sombra da canoa. A palavra sumiu. Essas canoas devem ter sumido também. Os índios vão sumindo. O tempo passa. O mundo também vai sumir. Com todas as palavras. De todas as línguas. Agora é noite, porque o planeta fez outro giro sobre si mesmo.
Não importa. Vamos em frente. À frente de ãatá, aardvark… Já inventaram todas as palavras, quem foi que disse essa bobagem? Eu tenho as minhas. Algumas. Não muitas. Alanzoar pede uma explanação mais precisa. Baderna foi uma bailarina, quem diria! Dançarina, melhor. Mesmo assim, como alguém poderia adivinhar que seu nome de guerra entraria para os léxicos do futuro, compostos por homens sérios e estudiosos? Bambu e banana, de origens incertas, dormem na mesma página. Bífalo, pensando no búfalo, mas já antecipando o bife. Delenda Carthago, teima até hoje Catão, o Antigo. Paderisco ou sindunian, pronuncia-se desprezando as regras da própria língua e sem saber, deliciosamente, em que sílaba, se na última ou na penúltima, se deposita a necessária tonicidade. Deleitônima, nessa sim, eu sei muito bem onde recai a tonicidade. Plam! – deve-se usar para quando se entregam flores, alegremente. Não é bem uma onomatopeia, entenda-se. Ela apenas lembra plantas. E a surpresa de trazer o buquê, até então escondido às costas, para o sorriso de olhos abertos da amada.
Essas expressões como: “Neguim vem e faz tal coisa…” talvez não sejam racistas. Desconfia, por sua própria conta, que esse neguim (que se confunde com neguinho) pode ser uma corruptela de alguém, ninguém – significando que alguém qualquer, um ninguém, que eu não vi, que eu não sei quem é, fez tal coisa. Muito bom, rapaz. Pode até ser. (Em outra parte da cidade, Liana também fala sozinha, vamos lá, esses humanos merecem toda a nossa consideração.)
Um hobby que beira a obstinação, o universo das palavras, das línguas, da estética que há em toda escrita, das esmeraldas e ervas que encontra nesse meio, desde o cheiro do papel dos livros, velhos e novos, até a essência da poesia, mas o que é a essência da poesia? – é assim que vai se instalando nele, amiga e bem-vinda, a fascinante semente da loucura.
Por aí se percebe que isso tudo está nas primeiras páginas dos dicionários, não de todos, e não: não podemos acreditar que ele irá se atrever a tal empresa, calçar as botas de sete léguas da melhor das intenções para percorrer as estradas-páginas desses léxicos contidos em sua própria invencibilidade, condenados por seu próprio volume a esmagar página sobre página, e que parecem pronunciar um eterno om em seus silêncios impenetráveis, em seu pesadelo de estantes, não, não queremos crer que, há alguns anos já, esse homem que não é nada, nem escritor nem financista, nem mesmo um amante admirável, quer pelo ponto de vista das gentilezas, quer pelo ponto de vista das selvagerias, tenha dado início a essa aventura ridícula, quixotesca ou einsteiniana, essa expedição delirante de um homem só.
Seus colegas não são assim – ora, ninguém é assim. Eles não o compreendem, apenas aceitam, e daí? Danilo não faz mal a ninguém mesmo… Seus amigos também não são assim, é claro – imagine se mais gente fosse assim, que seria deste mundo? Mas alguma coisa confessa a eles, não tudo. Conta casos pitorescos e lindas histórias. Eles se interessam por seus textos. Leem seus textos. E neles não encontram essas lindas histórias. Chegam a insinuar que não parece se tratar da mesma pessoa: onde estavam as lindas histórias que ele só contava no boteco? Mas são momentos diferentes, que não se cruzam, não se tocam. A literatura é feita por ideias mais incomuns, muitas vezes menos compreensíveis, porque ela procura caminhos para as perguntas e procura perguntas para os caminhos. Isso não são as coisas boas da vida e não são as mensagens de bem viver. Não são os cartões de aniversário, nem os discursos de formatura, nem a pena precária dos magos da autoajuda… Um arrepio. Que horror. Claro que não.
E claro também que não está mais nas varandas do dicionário. Já pulou a janela e tropeçou, lá nos fundos da cerca viva, no absurdo jardim de Alice. É sempre assim, a lógica não dura muito. Mistura-se ao delírio sóbrio de quem pensa que pensa – e não aguenta por muito tempo tal condição repetitiva. Por isso seus estudos foram tão precários, tão diferente do que lhe conta Liana, essa ótima aluna desde sempre, essa lúcida capacidade cognitiva, essa notável facilidade perceptiva, essa questionável habilidade persuasiva, passeando pela vida em forma de mulher. Mas Danilo não a vê assim. Porque só soube disso depois de conhecê-la. É, deve ser isso. Depois daquele primeiro abraço, de peitinhos firmes. Na verdade, ela é de uma feminilidade visível, sem reservas, que se manifesta continuamente durante todo o processo, na intimidade desses encontros deles, sem um momento que não seja de entrega e de cumplicidade, orientada por uma confiança nele, adquirida em tão pouco tempo, o que parece fazer parte da percepção exata dela, de logo ter encontrado em Danilo um homem em quem pudesse confiar por inteiro, o que faz essa barreira, a da hesitação, cair como uma velha ponte de pedra.
Não me importo com isso, não a invejo. Ela deve acreditar que eu não a invejo. Eu não queria ser o melhor aluno, o melhor carneiro, o conhecedor das regras, das leis, de tudo isso que ela conhece tão bem e que a torna confiante por isso mesmo, por conhecer todas essas normas, leis e lições, um círculo vicioso que, no fundo, apesar da respeitosa aprovação de todos, talvez só sirva mesmo a alimentar a vaidade. Essas leis e lições, Danilo não se interessa por conhecê-las, nem mesmo para transgredi-las – ou transgredir Liana, confundindo sua inteligência pragmática com as narrativas em espiral, enganando-a sem que ela o perceba logo de cara, conduzindo-a por esses jardins de Alice, próprios dele, bem disfarçados entre arbustos e arranjos, como se tentasse libertá-la desse tudo-certinho, das exegeses de fonte segura, dos conceitos à luz da teoria de consenso, das citações bibliográficas sem um mísero erro de pontuação, mas que tédio isso tudo! E mesmo assim, ela não era metódica o bastante. Dividia com ele as ousadias todas. Uma maneira de compensar, talvez. Que importa? Os dois se divertem.
Por aí se percebe também a facilidade de digressão desse pretenso escritor de ficções perdidas, coisas do dia, cristais à noite. Mas ele não precisa de muitos escritores. Muita gente escreve muita coisa. Não vivemos para isso tudo. Precisamos de poucos escritores. Só alguns, e chega. Desde que nos inspirem. Desde que nos tragam inspiração. Não é a mesma coisa? Voltar, cortar a frase anterior.
Danilo é muito influenciável. Fica manso, discreto e belo como Scott Fitzgerald. Depois, impetuoso e imprevisível, para não desonrar Dostoiévski. Vai acabar como Bukowski e Henry Miller, eles nunca se esgotam, ao que parece. Mas esgotam-se para ele, nada se sustenta afinal. Para iludir minha desgraça, estudo. Intimamente sei que não me iludo. Vamos, vamos, não é nenhuma desgraça viver assim – mas os versos do paraibano são ótimos, admita.
Sabe que nunca será um escritor. Não um de verdade. Quando descobriu isso, quando percebeu isso, quando entendeu isso claramente, sentiu aquela pressão no esôfago, aquele afogamento na traqueia, aquele peso por trás dos olhos, isso é a antiga vontade de chorar, ou é alguma outra coisa, mas por que não chorar? Por que não chorou? Porque não é o bastante, ele se diz. Um guerreiro, afinal, é o que sou, entre coleções de trechos preferidos – … he’s rolling, he’s the rolling stone… Mas é sim, era o bastante sim. Para chorar. Era o bastante e sobrava. Era triste. Não o bastante, ele teima. Qualquer coisa triste é o bastante. Qualquer coisa triste é triste o bastante. Não adianta teimar. Não adianta. Não, não adianta.
Coisas piores (será?) já se diluíram no tempo, pense nisso. Cinco anos. Pensando que o mundo era dele. Já tinham assassinado Kennedy, e um jogo diplomático secreto havia superado a crise dos mísseis de Cuba, o ponto mais perigoso da Guerra Fria, com risco de conflito nuclear e até mesmo de extinção da espécie humana. O Brasil sob ditadura militar. Mas, que nada! Meu aniversário está chegando, e vai ter festinha no fundo do quintal. Seus ídolos eram Walt Disney e Lampião (sim, Lampião!). Topete que a mamãe mandou, imitando uns ídolos dela, de vinte anos antes. Uma década depois (por sorte), ele dizia: “Long live rock and roll!” Ufa! Que bom que tudo isso acabou.
E a memória de quando seus pais haviam acabado de se mudar para o novo bairro. Ele tinha nove anos, enfrentava o que lhe parecia ser um enorme transtorno, uma nova classe do primário, entre colegas que o estranhavam nos primeiros dias, isso no decorrer de um mês qualquer, em meio ao curso em andamento. Mas não, não era nada. Tudo passou. O tempo sempre nos desperta, mesmo do que uma vez pareceu ser um incômodo pesadelo. Ainda nos primeiros dias, uns meninos do quarteirão o convidaram para a festa junina no terreno baldio, bem na esquina de sua nova casa. Claro, a que horas? A mãe preparou-lhe um prato de doces cortados em pedaços, comprados na padaria, cobriu tudo com um pano de margens bordadas, adequado a esse propósito. O vento frio o obrigava a fechar ainda mais o casaco, usando uma das mãos, equilibrando o pratinho na outra. O lugar estava escuro, silencioso. Era preciso esperar. Faltavam, afinal, uns cinco minutos, chegara cedo demais. Voltou para casa quase uma hora depois. Por que sempre raciocinava com tanta esperança? Com isso, só se atrasava. “Ninguém foi, mãe. Só eu.” Deixou o prato na cozinha, sobre a mesa, foi para o quarto, agindo com grande naturalidade. Todo o empenho em arranjar o pratinho de doces, a expectativa anterior a tudo isso, que havia começado no meio da tarde e se estendido à quase inteira hora de espera em frente ao terreno escuro, não, ainda não era de se lamentar. Mas a sua crença na festa falsa deve ter sido o que lhe causara então aquela pressão no esôfago, aquele afogamento na traqueia, aquele peso por trás dos olhos, a conhecida e antiga vontade de chorar.
Casa dos pais. Essa casa, um dia. De onde saiu uma vez, na noite de vento, protegendo o pratinho de doces para ninguém. Um dia nada disso é mais seu. As coisas não são suas, são projeções de outra genética, outros desejos e confusões, outras ansiedades e calmas geradas por influência externa, num tempo que você não viu.
Nunca será um escritor. E escreve isso, aí está, outro registro, outro exercício de hipocrisia. Outra metalinguagem cheirando a pólvora, outra maquinação de tragédias pessoais e ruínas secretas. Meus cadernos de caligrafia de menino não faziam supor que eu um dia viria a escrever coisas tão tristes. Quando o menino ensaiava em detalhes cada voluta e arabesco que cifravam o código que lhe servia ao pensamento, esperava um futuro proveitoso, no domínio de todos os códigos, porque alguém que conta, alguém que conta a história que conta, conta com o poder de um código. Um escritor se faz com seu código, sua sina e seu segredo. Um escritor se faz com cada palavra. Com o risco invisível da loucura. Com todos os perigos.
Ele escreve isso. E dorme feliz.
Marcas de gentis predadores – Guia de leitura
45. A cor intensa que nasce e morre com os humanos – sequência
43. Um estreito, fino rastro de sangue – anterior
Imagem: Balcomb Greene. Gertrude III. 1958.
por
Publicado em
Categorias:
Tags:
Leia também:
Comentar