Seu carrinho está vazio no momento!
Lisette Maris. Mapas e diários de não viajar (8/15)
Amanhã encontrarei Dalma e Diego junto ao fogo brando, contarei a ela de como levei Damares pela cintura sob os arcos do bairro velho, de como nos beijamos sob os fogos invisíveis e os cordões de flâmulas, Dalma me perguntará se eu não estou sob o efeito de algum encantamento ou da paixão. “Não”, eu lhe direi com segurança. “Tudo foi verdade.”
PARA DAMARES
Por que uma escuna ancorada,
noites com pratos que giram?
Por que todos querem viver e fazer coisas
na bruma de um planeta glacial?
que sempre venceu a todos,
quero hoje esquecer o mal que me fizeram,
embora o inverno seja ainda
o que esconde teu corpo de velas e ventos,
a escuna que me abra o mar.
“Nasci de uma casa e uma família ao mesmo tempo encantadas e tristes. Cresci um menino imerso em sonhos fantásticos que, no entanto, nunca me fizeram sorrir.”
Minha mãe não sabe, é claro, que retomei secretamente o diário de meu avô morto. Sei que posso avançar daqui. Não sou o capitão nem sou o último marujo. Apenas um agente, como todos, meu avô inclusive. É preciso lembrar que ele contava com uma coleção de mapas trocoides, que eram uma imposição da Igreja e obviamente não serviam para nada. Entre outras considerações, esse meu ancestral remoto acreditava, aliás, que os homens necessitavam dos diários de bordo, não tanto como um relatório de viagem, mas como um registro da solidão. Ainda de seus arquivos, resgatei um precioso atlas de Gerardus Mercator, bastante preciso para a época, cartas-pergaminhos confeccionadas por Cellarius (Amsterdã, 1708), das que trazem mapas alegóricos do firmamento, incluindo fases zodiacais, e até dificultavam a navegação. É preciso avançar. Observo um mapa mais atual. Considero o continente, o país, o ponto que é a cidade onde moro. Dedo no mapa: sei que estou aqui. Aqui e não em outro lugar. Sei que existo sobre este mundo, neste continente e não naquele. Sei também que o mundo está sempre aí, com todos os seus lugares, mas o problema é que gira. O mundo é, de alguma forma, o tempo. Eu, tendo nascido, vivendo hoje e escrevendo, sei que morrerei no futuro, e o mundo estará aí outra vez, em seu dia-sempre, com todos os seus lugares. Não se trata de viajar. Mas viver num certo lugar. Não se podem encontrar os povos nos mapas, os mapas no tempo e o tempo nos calendários. Também não me ocorre uma explicação menos insensata para tudo o que penso. Disse que avançaria: por que me desviei tanto? Quero ainda registrar meu encontro com Damares, nosso passeio à Vila da Esplanada. Minha noite de primavera.”
Lisette Maris em seu endereço de inverno – Guia de leitura
Lisette Maris 9. Seus olhos estreitos, sem se desviar das cinzas – próximo
Lisette Maris 7. O doce ferrão de sua primavera secreta – anterior
Imagem: Gordon Frickers. Navio a vapor de chaminés azuis ao luar.
Leia também:
Comentar