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Manifesto
(Este poema em prosa tinha uma razão de ser quando foi publicado pela primeira vez.)
Não escondeu o matagal o sangue puro do povo,nem o tragou a areia do pampa.
Ninguém escondeu este crime.
O Crime foi no meio da Pátria. – Pablo Neruda, Os massacres
1
Um coelho indefeso, objeto de caça, se esconde, se esquiva, se esforça, mas não terá em seu país outro destino.
Quando subiram os insaciáveis, quando juraram a grande nação do futuro e garantiram ordem para que pudessem (eles próprios) fomentar o caos, alguns não se enganaram e disseram não. Era tarde para esses: a raposa se lançava sobre os que não digeriam a mentira.
Todo o país era um quartel em sangue. Já havia começado a caçada. E éramos nós os coelhos.
2
Sempre que quiserem, estaremos aqui. Ou nossos filhos ou netos. Sempre que lhes convier ser a raposa, nós cidadãos, com nosso trabalho, seremos de bom grado os coelhos da pátria e estaremos aqui.
Brincaram esses homens na Alemanha ariana, nas Rússias de Stálin, nas Américas da CIA, com sua águia de rapina – por que não?
Sempre que quiserem, nós, com nosso sangue cotidiano pronto a ser usurpado, nós – o povo – estaremos aqui.
3
Arrancados de suas casas à noite, arrastados sem juízo nem direitos, e seu crime era denunciar a farsa. Os corpos inchados saíam dos porões, os porões do regime, onde se reduziam homens a animais agonizantes, saíam para o esquecimento, tornando-se estatísticas secretas e sombrias.
Homens do mais expressivo valor em mãos de bárbaros carrascos, ao prazer de seus instrumentos e como brinquedos (brinquedos que morriam) – intelectuais, artistas, estudantes, professores, médicos, engenheiros, revolucionários, pessoas comuns: humilhados, presos, torturados, mortos, tudo a mando dos altivos generais da pátria, cuja cumplicidade compravam facilmente aos bárbaros, consignando-lhes migalhas de poder.
Gasto o sangrento regime, resta o som opaco de palavras como tortura.
Desde a mais doce palavra, sobe à boca um gosto de sangue. E a letra T se transforma facilmente em uma cruz.
4
Aos inconformados, chamaram subversivos. O poder ordena silêncio. As cruzes se erguem para novos mártires.
Tu, que crês na verdade, olha ao redor: resiste aos que te dominam e busca sempre mais o justo caminho à liberdade humana.
5
Quem são os desaparecidos? Quem foram? Que pessoas amaram? O que são esses retratos em série com tantos rostos? Tarde talvez para qualquer resposta. Corpos à margem do asfalto, flores na mata rasa, alma que se sonhava.
6
A revolução não propriamente multidões em marcha: cada um, em cada casa. Cada objeto que se deixa de comprar. Cada vez que se desliga a tevê.
7
Nas escolas, os livros mostram paisagens alheias, adesivos em outro idioma enfeitam os cadernos.
Da janela, a paisagem dos que não puderam entrar: descalços, os meninos pobres vadiam e pescam nos rios imundos.
8
Os fantasmas de ontem, os que impressionaram Portinari e João Cabral, repetem-se em meio à mesma miséria em cada criança à luz do sertão.
E todos os fantasmas são irmãos.
9
Bem-vindos à terra paradisíaca. Divirtam-se, embriaguem-se, nada há para incomodá-los. Só os que se proclamarem contrários serão condenados por traição.
10
Eu me declaro culpado por meu ofício de rotina e meu salário. Por ter usado o verso apenas por mim e não ter-me insurgido há mais tempo. Por ter sido apenas um homem honesto – e nada mais do que isso.
Leia mais poemas e sobre poemas: O recurso da relva
Imagem: Pablo Picasso. Guernica. 1937.
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