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Lisette Maris. O doce ferrão de sua primavera secreta (7/15)
Seus olhos esperançosos lançam-me centelhas e cristais marinhos.
Diário de bordo. De acordo com a posição do Sol e a fase dos calendários, Lisette Maris atravessa agora a última etapa desta estação glacial. Damares não me pergunta sobre o inverno, talvez tenha se acostumado também. Suspeito que, por trás da bruma e da luz que escurece os dias, erre à deriva a verdade de um grande segredo. Ou mais uma esperança idiota.
Prefiro esperar aqui mesmo, digo à velha criada, e ela se retira, sem deixar ver seus olhos. Lá em cima, Damares discute ostensivamente com o pai. Rosnam e vociferam, mal compreendo o que dizem. Após atirarem-se umas últimas frases-farpas, ouço passos, volto-me ao topo da escada, por onde Damares desce com agilidade, bufando de tédio e cólera, as bochechas enfunadas soltam-se num sorriso quando me vê. Beija-me o rosto muito rapidamente.
“Ele se acalmou?”, pergunto em voz baixa.
“Acho que não. Vem, vamos sair pela frente.”
Ao deixarmos a casa, sinto-me aliviado por uma grande felicidade. Na calçada, enquanto nos pomos a caminho, disfarço uns passos para acercar-me de Damares, lanço a mão num movimento leve e oscilante que alcança a sua, ela o aceita com naturalidade, como se não fosse a primeira vez que andássemos de mãos dadas. Com isso, seguimos para a Vila da Esplanada, onde se dá a tradicional Feira do Largo, eu desejando com toda vontade que não seja esta a oitava maravilha mais chata do mundo.
Damares se encanta com alguns objetos, adereços artesanais, enfeites com temas náuticos, miniaturas de veleiros e canecas ostentando imagens de sereias, mas há também barracas de atrações, eu as observo com curiosidade, mas o certo é que meus olhos se voltam todo o tempo para ela, Damares, minha colega de escola e estação de âncoras. Minha namorada.
Seguimos a feira interminável pela Travessa do Adro, entre artigos coloridos e repetidos jogos, cordões de flâmulas, alguns tão baixos que afagam nossas cabeças, até alcançarmos a Rua da Enseada, último lance de barracas sobre os calçamentos de pedra, que desemboca entre as portas de arco no coração do bairro antigo, a Esplanada do Porto, onde um esbarrão nos faz tropeçar por um instante, Damares subitamente mais próxima, meu desastrado abraço de salvá-la, sua cabeça acomodada em meu peito por mais tempo do que eu esperava, um silêncio de gestos que nos mantém assim, em meio a todos, primeiro os lábios dela resvalando sobre minha pele, antes de colarem-se aos meus. Sendo Damares um pouco mais baixa, há um ligeiro esforço inicial de sua parte, o que faz de seda e saliva meu primeiro beijo sob os arcos, o doce ferrão de sua primavera secreta, a vespa gosmenta de me haver convertido em estátua de açúcar cristalizado, cego de olhos suspensos numa escuridão de luzes, olhos que ouvem como fogos o inofensivo crepitar dos pequenos traques, as chamadas eloquentes dos barraqueiros, restos de música ordinária, rumor do que dizem os mais próximos, mais o riso das crianças, e novamente a mesma sensação: meu corpo flutua agora sem controle, presa de ondulações imprecisas, sangue sob a alta propícia e ventos favoráveis, então é isto navegar?
“Não diga nada”, antecipa Damares.
Não digo. Depois, digo: “Se há algo que possamos dividir…”, um esforço imenso.
“Que merda”, diz ela sorrindo com ternura, olhos como num aquário. “Essa conversa de romance não é pra nós. Somos vivos, temos sangue. Amarei você por uma semana se quiser me amar por uma semana. O eterno cabe nos calendários, vem aos poucos.”
“Você, de onde tirou isso? Algum almanaque?”
Ela se rende, ri de viajarmos à mesma velocidade, beija-me outra vez. Peço-lhe que fale em meu ouvido todos os palavrões que conhece, ela desfia com voz doce e arquejante um delicioso rosário de termos inesquecíveis. Ofereço-me ao que quer que faça, sinto-me capaz do que não posso, por ela. Seus olhos esperançosos lançam-me centelhas e cristais marinhos.
“Você lutaria com meu cão?”
Lisette Maris em seu endereço de inverno (7/15)
Lisette Maris 8. Mapas e diários de não viajar – próximo
Lisette Maris 6. Caminhar, como faço agora – anterior
Imagem: Albert Kotin. Chuva sussurrante. 1957.
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