Office in a Small City por Edward Hopper

Um estreito, fino rastro de sangue

Pensa nele com a impressão abafada de estar cedendo a uma armadilha invisível.
Com essa dúvida sobre aquela morte antiga.

Carolyn Pyfrom. viceroyLiana lia. Esse assunto lhe interessa cada vez mais. No fundo, não lhe interessava muito antes, ou quase nada. Nada que superasse a curiosidade momentânea despertada por alguma notícia espantosa, casos escassos, mas impressionantes: a mente dos serial killers. Em inglês, é sempre mais elegante. Assassinos seriais? Não: definitivamente não é a mesma coisa. Mas que importa? O que importa é entender como pode alguém se disfarçar tanto. Além, é claro, dessa necessidade desprezível, inconfessável: colecionar vítimas, planejar detalhes… Liana corre os olhos por trás de seus óculos delicados, de aro redondo, mas não que faça deles uma espécie de bicicleta ansiosa, deslizando sobre as linhas do texto. Na verdade, lê em silêncio, calmamente. Mas atenta.

A pequena tela ligada no noticiário, como costuma fazer, a TV portátil pouco à frente, numa estante, no mudo, imagens do mundo todo, lábios de gente bonita contando todas as coisas boas e ruins para nós, os devoradores de novidades e de velharias, a imprensa e sua garganta insaciável, fatos e boatos de toda parte, de toda hora. Política. Desastres naturais. Desastres provocados. Acidentes. Assassinatos. Volta os olhos ao livro. Ao que lhe interessa, no momento. Liana sabe que todo crime tem um componente digital – uma ligação registrada em um celular, um sinal precedente, algo em disco rígido, câmeras, um dispositivo de rastreamento num automóvel… Mas não naquele tempo. Não naquela época. Naquela época, não havia nada disso, e estamos falando da Pré-História humana, antes da drástica divisão provocada pela Era Tecnológica, perto dos anos 1980. Às vezes, a ciência é a única maneira de saber. Por isso, Danilo ficou impune: não havia ciência suficiente. E é como um professor dela certa vez observou, em uma aula de produção de textos, que Dom Casmurro não poderia ser escrito hoje: um exame rotineiro de DNA resolveria a parada, eliminando toda a dúvida sobre a legitimidade do filho de Bentinho. Portanto, o romance… Puf!: cairia no vazio. Bem, pelo menos quanto a esse ponto. Outro caso que também valia a pena… Não, não valia não. Volte, volte. Onde é que estava mesmo? Quer dizer, onde estava com a cabeça mesmo? Assassinos em série. Isso, ótimo. (Um prazer incompreensível em tentar entendê-los, caso a caso, que gente estranha, que coisas estranhas, essa foi mesmo surpreendente, essa outra aqui, tenho que admitir, foi genial…) Esses tipos têm um perfil que assusta por sua naturalidade, sua neutralidade na vida diária. Os vizinhos mostram-se estupefatos: mas esse sujeito, hein?! Tão boa gente, incapaz de fazer mal a uma mosca… Não, a uma mosca, não. Eles choram por seus bichinhos de estimação, não sabia? Danem-se as moscas. Moscas não lhes interessam. O que interessa é o Senhor das Moscas. Ah, outra vez essas lembranças, não, não. São coisas que Danilo lhe conta. E é claro que ela conhece o livro, mas nem se lembra mais dele direito, é um livro de homens, para homens, mulheres não se ligam muito nessas histórias, esquecem logo, assim como não veem graça nenhuma em filmes de espionagem e outros produtos repetidamente reciclados para satisfazer a eterna infantilidade masculina, essa adolescência especial que nunca termina nos homens. Isso é coisa dele. Ele é que é o leitor desses trastes todos, que vê o mundo com esse senso de realidade que só os fortes confrontam e suportam. Ele é o foco de sua atenção quase total por esses dias. Por todos esses dias em que… Fortes, foi o que disse? Forte o bastante para parecer natural? E era o foco também nesse momento em que Liana lia. Ela se dá conta de que, sempre que pensava nele, parecia haver mais coisas acontecendo do que podia supor. Parecia haver mais coisas acontecendo por trás dele. Por trás do que ele dizia. Do que ele confessava. Do que ele distorcia. Ele era o perigo.

E esse amigo que ele diz ter encontrado faz uns dias, o Vérri ou Werner, não sei, deve ter sido isso o que trouxe essas memórias de volta, homem nos quarenta cai nessas nostalgias, a juventude perdida, os amigos que não se encontraram mais, a ex-namorada que…

De repente, ela enfia as mãos nos cabelos. Levanta-se, passa ao redor da mesa, sozinha no apartamento em que mora sozinha, nesse apartamento sozinho em que só habita e habita só, que é o melhor para mim, desde que… Pensar agora no antigo eterno companheiro não vai servir para nada. Além disso, não pretende se distrair. Tem outro companheiro agora. Mas onde está com a cabeça? Desde quando seu atual namorado, tão especial e carinhoso com ela, leitor e pretenso autor de ficções da rotina humana, pode ser um assassino em série? Isso sim é um exagero ridículo. Aquilo foi um único caso. Um único episódio isolado, um único… assassinato? Não, não, espera aí, espera aí… – anda pelo escritório sem perceber que anda pelo escritório. Será possível mesmo? Aquela louquinha se matou, fazer o quê? Aquela vaquinha desmiolada se matou, nós gostando ou não. Qual é o problema com essa versão, a versão oficial, a versão dos jornais? Os jornais… Ahn! É isso. Chegou a hora de aceitar ver os tais jornais. Liana sente um ponto mínimo de felicidade. Ver os jornais, matar sua ansiedade, sua curiosidade, matar sua dúvida, matar… Porque é importante saber, como não? E é isso o que está lhe faltando, porque é isso o que ela não sabe até agora. Não tem nenhuma certeza. Talvez disso dependa a continuidade desse meu relacionamento, porque isso é importante, é importante saber, claro que é. Talvez? Talvez dependa disso? Menina! – ela se acusa. Nunca viu um desses filmes do tipo dormindo-com-o-inimigo e coisas assim? Você pode ser a próxima vítima. O próximo troféu macabro. A próxima a desfilar morta no carro dele, seu rosto uma máscara mortuária sendo exibida por toda a cidade, sob luzes artificiais, semáforos e sombras. Que horror, que… E antes que ela se torne uma caricatura patética de si mesma, começa a rir, de novo com as mãos nos cabelos, e para em seguida. Rindo sozinha, que isso?

E que história é essa de ser a próxima? Liana, se enxerga! Você estudou, se formou, não é uma qualquer. Pensa nisso. Pensa nisso! Não é possível que a tal mídia de entretenimento tenha influenciado a tal ponto seu julgamento, seu discernimento, tanto que a tenha tornado uma garota assustada por causa de… Não, claro que não. Somos adultos. Que grande bobagem. Mas que grande bobagem! (Ela sente que seus olhos estão sem foco. Faz crescer em si mesma uma pergunta, uma dúvida, e logo tenta eliminá-la bruscamente, como se passasse por aquelas portas automáticas que se podem abrir suavemente, mas que depois se fecham sozinhas, com firmeza.) Talvez ele só lhe houvesse contado sobre ela, sobre a Ana Lúcia. E as outras? E se ele fez isso com outras? Volta-lhe a voz dele, Danilo sem vontade: “Por que você ainda quer saber sobre ela?”. E como poderia saber sobre outras? Sobre quantas? Quantas? Que loucura, mas que loucura, menina. Só pode ter sido uma só, imagine. Uma só, e vamos deixar de fantasias e exageros e dramas do invisível. Uma única ex complicada, um caso singular, uma menina estranha, diferente das outras, uma só memória marcando o passado dele, fazendo-o traumatizado, e que agora incomoda Liana no presente. Uma só vítima. Uma só morte.

Traumatizado? Lembra que ele nem se altera ao falar dela? Bem… Algumas vezes pareceu alterado sim, meio disperso, mas… Isso não tem nada de trauma, pelo jeito.

Volta à mesa, reorganiza os livros, deixa a caneta de lado, tinha prometido a si mesma não anotar nada. Palavras escritas atrapalham. De qualquer forma, sempre que pensa em Ana Lúcia, vê alguém de olhos fechados, vê sangue, vê uma poça de sangue… Não, não seja tão básica, tão previsível com isso tudo. O que pode ver, no máximo, é um rastro por onde Danilo a teria carregado (carregado seu corpo, como os detalhistas mais irritantes insistem em dizer) até a saída do motel. Do hotel. O que pode ver, quase nitidamente: um estreito, um fino rastro de sangue.

Mas que importa fosse uma poça de sangue no quarto ou um fino fio escorrendo do ferimento, descendo as escadas? Que importa se havia ou não sangue? Nem isso. Por que Danilo não conta tudo em sequência, tudo em ordem? Não seria mais simples, menos intrigante? Talvez a memória crie dessas ciladas quando se trata de algo traumatizante, Liana, você sabe disso. Apesar de ser do Direito, conhece psicologia um pouco, leu tanta coisa, como não? Sua faculdade, seu curso, suas notas brilhantes, sua conduta perfeita, invejável para algumas colegas, admirável para outras, as xérox com marcações amarelas (amarelo-limão, gosta de pensar, resgatando suas aquarelas de menina, o fascínio de encontrar nomes de cores: musgo, havana, encarnado…), a boa menina, sempre bem-sucedida, que vida exemplar, e não só isso, mas é assim que você sempre foi feliz, colecionando etapas vencidas e recompensas de toda ordem, e mesmo com seus namorados, e com aquele seu eterno mais duradouro, ele é que não poderia tê-la perdido, pior para ele, não é? – com isso revendo, entre manchas de breves imagens que não pretende espantar com a mão, seus últimos vinte anos, desde as descobertas até a prática lenta, cuidadosa, desde os 16, 17 anos, quando começou sua trajetória sexo-romântico-afetiva, passando pelos namorinhos adocicados de uma iniciação que se melindra com qualquer pequeno bafo da realidade, passando pelos sinais de melhor malícia assimilados com o tempo, fazendo dela uma grande fingida com aparente poder sobre si mesma, e com poder sobre alguns outros, passando pelos momentos de sexo livre sem constrangimento e pelos momentos de sexo livre com constrangimento, torturando os professores que olhavam suas pernas e seus pés, revendo situações e imagens soltas com um delicado sorriso mudo, do alto de sua soberania atual, de seus 35 anos de adaptações triunfantes, por um momento se comparando a uma amiga que cuida do pai doente, um ex-militar, não quer acabar como ela, aos 35 ainda solteira, pelo menos não por um motivo desses, um velho militar perdendo sua vida, perdendo sua pátria, desculpe a frieza, minha amiga, mas eu quero viver. Aliviada e orgulhosa por ter superado quase toda a moral conservadora que lhe fora imposta por meio da doutrinação e do padrão exercido nas boas escolas da cidade, o que havia aprendido com as freiras quando menina e em boa parte de sua adolescência, e foi se desfazendo, aos poucos, de todos os logros. De todo ranço de autoridade alicerçada em coisa nenhuma. Mesmo naquela época, já não acreditava na maior parte do que os religiosos lhe ensinavam. Era inteligente e sensata. Em algum ponto, não era mais aquela menina obediente e bem conduzida. Ela havia crescido, evoluído, adquirido autonomia de pensamento, e queria que o cu das freiras pegasse fogo. Agora, aos 35, vivia seu auge intelectual – e também físico. Minha idade, ela se diz. Minha ótima fase, minha ótima idade. Estou muito bem mesmo. Fisicamente, estou ótima. É uma idade importante para uma mulher – e também para um homem, como não? Maturidade e compensações. Oportunidades e autonomia para decidir. Mesmo que, em qualquer outra fase da vida, se estabeleça a raridade do amor. Pensa em Danilo (pensa muito, muito mesmo, em Danilo) com a sensação obscura e prazerosa de ter encontrado o amor de sua vida. Ela e sua decantada autonomia, hein? Ela, que podia sempre escolher… Pensa nele com a impressão abafada de estar cedendo a uma armadilha invisível. Com essa dúvida sobre aquela morte antiga. Com o receio de estar resvalando em sua própria carência de afeto, com o arrepio intolerável desses primeiros sinais de sua decadência.

Na TV, o momento especial da partida, a comemoração do gol. Os homens se abraçam por um momento, misto de histeria e força, parecem unidos, uma pungente manifestação de fraternidade, mas… Antes disso, o autor do gol fez um gesto quase obsceno, e seu rosto parecia uma máscara de ódio, a expressão do guerreiro que ferve em sangue por um instante, odiosamente feliz por ter derrotado seu inimigo, um primata indisfarçável, como todos eles, todos eles, que em outro momento, outra situação, parecem tão gentis e prestativos, tão unidos, tão distantes dessa agressividade evidente, intensa, obsessiva, desses predadores carregados de hormônios, cheios de vontade bélica, em busca de glória, em busca de morte. Eles são assim, os homens. Gentis quando necessário, sensíveis até. E dedicados. E protetores. E paternais. Para depois extravasarem todas essas necessidades que não saem de seu sangue, de sua genética soberana, tornadas hábitos eleitos pela civilização, entre gritos de fúria e socos no ar.

Distraída, em meio a essas tais manchas de imagens que flutuam entre a tela da TV e sua dispersão reflexiva, vê outra vez o motel à beira da estrada, o motel agora deles, seu refúgio de intimidades e ousadias, que no caso não precisa ser secreto, muito menos eles precisam ser secretos, mas é sempre mais gostoso pensar que sejam, enfim, secretos. Será que ele conta tudo isso ao tal Verre? Afinal, não nos prometemos segredo, somos livres, não tem importância que outros saibam. O lugar secreto deles. O motel próximo a umas colinas verdes e azuis de um lugar que poucos percebem (assim é a impressão dela, porque os carros não diminuem a velocidade ao passarem por ali) e que talvez configure, sem nenhum alarde, a paisagem mais bonita do mundo.

Liana imagina o motel (hotel, menina: Hotel Marte) onde Ana Lúcia fora assassinada. Consegue imaginar-se fisicamente no lugar dela. Sente a cama onde ela está, ainda viva. E por uma necessidade estranha, vai ao seu quarto, puxa o lençol, depois o edredom, deita-se ali, em sua própria cama. Fecha os olhos. E ocorre-lhe algo estranho. Uma preocupação rápida, surgida do nada, sobre isso de brincarem de ser secretos. Por que ele quer brincar disso? Sendo secretos, se alguma coisa acontecer, ninguém mais saberá sobre eles. Ninguém sabe aonde vão, onde estão. Mas que coisa pensar nisso tudo, não? Acontecer o quê? Está estragando tudo, Liana. Por que fazer isso? Vocês vão se encontrar daqui a dois dias, não é? Então não estrague tudo com ele, não estrague tudo para si mesma. Além dessas faíscas de ideias bobas, ela também se inventa em um casaco elegante, chegando ao apartamento de Danilo, acompanhada da polícia, como nesses filmes franceses em tons de azul e chuva, em que dois investigadores de capote se anunciam educadamente à porta da casa do suspeito, sim, ela roteirizou toda a cena. Usa um lenço na cabeça. Está de frente a ele. “Acabou, Danilo. Acabou…” Ele a olhará, surpreso e magoado. “Você…” Ela, com lágrimas nos olhos, emocionalmente desgastada após a terrível decisão de denunciar seu amante, seu amor. Claro que ela gostou de ter criado essa bobagem cinematográfica, divertiu-se um pouco consigo mesma, tão bonita nessas roupas de época, o que os filmes fazem com a gente, não é mesmo?

Na realidade, os crimes não são tão passíveis de dúvida como no cinema francês dos anos 1970. Como ela já havia considerado, sempre há um componente digital. Mas isso da Ana Lúcia não tinha ficado em nenhum disco rígido, em nenhum aparato digital, nenhum banco de dados informatizados. Ficou, inevitavelmente, no disco rígido da memória dele, e já começa a contaminar outra memória, a dela. Um crime que ainda se mostra absurdamente, uma memória que Liana não tinha, e que passava a ter, de algo que não havia presenciado, que talvez nunca houvesse acontecido como confusamente imaginava, um crime que retorna das noites desaparecidas no passado, como em golpes a chuva revolvendo a terra, como um vírus se instalando no disco rígido infectado de sua mente, o arquivo dinâmico e inextinguível da dúvida humana.

E deseja Danilo, quer vê-lo do mesmo jeito, quer, ansiosamente, encontrar-se com ele, salivando de vontade. Está apaixonada, só isso. Sabe disso. Vê o rosto dele em toda parte, ouve a voz dele passeando entre seus ouvidos. Parece bobagem, parece infantil até, mas uma verdadeira paixão não se adapta à ordem rotineira das coisas, aos dias em série, às propostas razoavelmente compreendidas, aos ideais que pensávamos ser mais fortes quando trabalhados com a razão. Uma paixão, quando muito intensa, não se enquadra em nenhum de nossos valores conscientes. Mas é essa mesma a sua realidade, essa paixão intensa? Não estavam quase se acostumando um ao outro, em tão pouco tempo? A paixão – pelo menos esta sua paixão – será maior do que a dúvida, será maior do que o medo? Palavras, palavras, palavras, William: frases de castelos de cartas caem com um sopro.

E o que ficava dessas imagens todas, o que voltava com mais frequência, era não propriamente a garota de olhos fechados, a nudez de uma tragédia imprevista, mas o estreito e já escurecido, o fino rastro de sangue entre as escadas do hotel ordinário. Um rastro delicado. Silencioso. Apontando um caminho. Carregando um silêncio. Carregando um grito.

Marcas de gentis predadores

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42. Memórias de gentis predadores – anterior

Guia de leitura

Imagem: Carolyn Pyfrom. Borboleta vice-rei. 2005.

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