Office in a Small City por Edward Hopper

Eco, a cidade dos demônios

Esses tais demônios vinham de uma estirpe que fora gerada entre velhos espelhos de um sótão, assimilando desde cedo travessuras desse tipo, brincando de refletir uns e outros em cacos irrecuperáveis.

Como parte da rotina e invariavelmente, qualquer morador podia ver o senhor Antão Antônio de Deus pintando o muro de sua casa pela manhã, pois o muro absorvia toda a tinta do dia anterior e o forçava a pintá-lo novamente no dia seguinte, quando tornaria a absorver toda a tinta outra vez, como no dia anterior. Após sua morte, venderam a casa, derrubaram o muro e construíram ali a nova sede do clube dos militares, que, em noites vagas, servia também às solenidades da Academia Municipal de Letras.

O transcorrer de tais ciclos sem função, que caracterizava o cotidiano sem esperanças da longínqua Eco das Almas, foi aos poucos sendo minado por certos incidentes curiosos, o que já prenunciava a chegada dos demônios.

Durante a procissão, a imagem da padroeira caiu de seu sustentáculo, fazendo-se em muitos pedaços. Não por descuido dos que a carregavam, mas um cão escuro e furtivo, a confundir-lhes as pernas, fora a causa do ocorrido constrangedor – o animal havia desaparecido tão depressa como surgira, em meio à multidão de fiéis.

Eco alvoroçou-se com a notícia de que o respeitado professor Caio Cosme, astrônomo amador e funcionário público nas horas vagas, havia constatado a trajetória, em linha reta, de um meteoro na justa direção da cidade. O professor Cosme cuidadosamente calculou que o sinistro corpo errante levaria uma semana para chegar, porém todos agiam como se o mundo fosse acabar em apenas um ou dois dias. Como já se poderia esperar, desencadeou-se um pandemônio sem precedentes, em que todos, quase ao mesmo tempo, decidiram pôr em prática tudo o que não lhes era permitido, realizando assim seus instintos e desejos, por mais extravagantes que fossem, nos últimos dias do mundo.

Entre os inúmeros casos de saques, demolições, porres e festins coletivos, vinganças, estupros e suas variações, houve a revelação pública e eloquente de certo vereador da oposição, que se confessou perdidamente apaixonado pela esposa do vice-prefeito, tendo inclusive se masturbado muitas vezes por ela.

A notícia era falsa. O professor Cosme teve de admitir os resultados equivocados de suas meticulosas equações, e o asteroide apocalíptico acabou caindo bem longe do interior e da minúscula Eco das Almas – por sinal, na mais profunda faixa abissal do Oceano Pacífico, registre-se. Os cidadãos, pouco afeitos às ciências, suspeitavam que algum tipo de demônio houvesse induzido o astrônomo a erro (ele que era o único ateu da cidade), e ficaram muito tempo sem sair de casa e sem se falarem uns aos outros pelas ruas, compartilhando, a contragosto, uma situação nova e constrangedora.

Por fim, os demônios chegaram. A princípio, ninguém os reconheceu. Eram semelhantes aos moradores de Eco, de tal forma que se supunha estar vendo um inofensivo vizinho, quando, no fundo, se tratava de seu respectivo demônio.

Quando o prefeito e o secretário das finanças, voltando cada um a sua casa, descobriram-se roubados, notaram que seus cofres particulares haviam sido esvaziados, em joias e apólices, na mesma proporção das verbas por eles desviadas do erário municipal no mesmo ano.

“Assim não é possível!”, desabafou o secretário. “Onde é que nós vamos parar?”

Um garoto foi a primeira vítima a ver seu demônio: tinha sua mesma altura e aparência, e também hesitava, com uma pedra na mão. Ameaçava apedrejar um cão sarnento, no terreno baldio onde brincava. Mas o demônio imitava seus gestos, como num espelho. Quando, por fim, a pedra rasgou a orelha do cão, o menino sentiu que sua própria orelha ardia com uma pedrada idêntica. Entrou em casa chorando, manchado de sangue.

“Quem te fez isso, meu querido?”

“Foi um demônio, mamãe… Um demônio!”

Os habitantes já não podiam viver tranquilos. Tudo o que apenas imaginavam praticar secretamente voltava-se contra eles próprios, pois esses tais demônios vinham de uma estirpe que fora gerada entre velhos espelhos de um sótão, assimilando desde cedo travessuras desse tipo, brincando de refletir uns e outros em cacos irrecuperáveis.

Conta-se que um jornalista salvou a cidade sem saber, ao persuadir um general do Alto Comando a voltar atrás, em um plano considerado de rotina. O militar, oriundo de Eco, onde mantinha ainda sua família, em uma residência confortável e segura, servia na capital, e no momento estudava uma estratégia e uma abordagem ofensiva que incluía a devastação de uma pequena cidade estrangeira. Os demônios, habilmente, sobrepuseram ao seu mapa um mapa semelhante, no qual a cidade-alvo chamava-se Eco das Almas. E riam-se, às escondidas.

Na cidade, tudo se transformara num inusitado, patético pesadelo.

“Deus nos ajude!”, clamavam as beatas. “Que será de nós, com tantos demônios?”

Eco das Almas, que, como toda cidade, dizia-se hospitaleira e acolhedora, já não atraía sequer retirantes sem rumo. A notícia se espalhara pelas regiões vizinhas, e todos temiam ser agredidos e prejudicados por algum demônio que lhes correspondesse. A sequência de incidentes incômodos culminou com a morte de um caçador e seu filho, cujos corpos foram encontrados com balas, de suas próprias armas, no peito e na cabeça.

“Vocês não podem fazer isso!”, lamentava-se a viúva. “É cruel demais.”

“Podemos tudo”, eles respondiam. “Somos demônios.”

O único meio de fazê-los parar foi novamente a reclusão dos habitantes, bem como a suspensão de quaisquer atitudes que pudessem lesar a outrem. Até o prefeito desistiu temporariamente de suas falcatruas, por receio de perder o que ainda possuía.

Com a escassez das intenções, atitudes e pensamentos perniciosos, os demônios acabaram se entediando. Com isso, decidiram partir em busca de outros lugares onde havia gente. Despediram-se de Eco das Almas com caretas de escárnio e gestos de desprezo aos moradores assustados, que os espiavam de suas janelas, vendo-os diminuir de tamanho contra o horizonte.

Só o bispo, que não revelou a ninguém as desventuras que lhe impusera seu demônio, reivindicou para si, e ao fervor de suas orações o poder de afugentá-los da cidade. Convocou os cidadãos a uma missa de graças, garantindo à população que eles jamais voltariam a incomodá-los – no que, naturalmente, ninguém acreditou muito.

E quem visse a madrugada serena sobre os telhados, as casas baixas, de tetos tão familiares, mal poderia crer que tantos demônios usaram uma vez, como palco de suas diabruras, a pequena e esquecida Eco das Almas. Também punham em dúvida o que contavam uns vizinhos de uma família tradicional, jurando ter ouvido, poucas noites depois, gritos abafados de pavor.

Imagem: Chang Chao Tsung. Autorretrato.

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