Office in a Small City por Edward Hopper

O beija-flor de Ruschi

Não era meu o pecado, era dele, mas eu estava junto.Segunda-feira

Desde que me dou por gente sou tratada que nem filha nessa casa. Porque nunca tive pai nem mãe e ninguém eles me criaram me deram roupa e comida e me ensinaram ler e escrever. Nunca me deram dinheiro mas nem nunca eu precisei. Eles me dão tudo. Sou que nem filha pra eles.

Durmo no quarto lá fora o de empregada mas eles não Durmo no quarto lá fora o de empregada mas eles não gostam que chame assim. É pequeno mas limpo e confortável. Tenho até um quadro de Nosso Senhor e uma imagem da padroeira que sempre me protegeu e me guiou e eu já tenho quinze anos.

Pra não dizer que nunca eu quis nada hoje mesmo eu caí em tentação vendo um vestido numa vitrine quando fui pagar o crediário da caçula na rua das lojas. Como era lindo! Simples de tecido barato mas vermelho e lindo. Estava em promoção e custava 500. Nem dava pra acreditar! Li no anúncio que era só até sábado. Promoção é sempre até sábado. Mas parei de ver e fui embora. Não preciso disso. Vestido é o que não me falta. Tenho até mais bonitos mais finos do que aquele. Eram das meninas. Elas sempre me deram tudo. Depois eu não ia ter coragem de pedir. A patroa ia ficar ofendida ela que nunca me deixou faltar nada. E vaidade de coisa terrena quando a gente não precisa pra que serve se a gente tem Deus no coração e uma madrinha padroeira pra olhar pela gente? Voltei pra casa e parei de pensar nisso. Era segunda-feira e eu tinha uma semana inteirinha pela frente.

Terça-feira

Na terça chegou da capital o primo das meninas. Faz séculos que ele não vem. Hoje tem mais de vinte anos ele. Homem feito e bonito. Me tratou bem que nem os daqui e me agradava perguntando de mim se eu ia estudar se eu tinha namorado e essas coisas. Eu não. Pra que estudar? E casar e sair dessa casa? Nem pensar. Gosto demais daqui. Estou acostumada com todo o serviço e sou tratada que nem filha. Pra que arriscar vida dura por aí com um que não teve a minha sorte? Graças a Deus nunca me faltou nada. E namorar pra ficar se esfregando Deus me livre que pra mim não serve. Minha santa gosta de mim é assim que sempre fui moça direita e honesta de coração. Então não me educaram e me cultivaram na fé cristã? Então não sempre me deram tudo? Pra que que eu vou me sujar? Deus me perdoe.

Quarta-feira

Quarta-feira só.

Quinta-feira

Quinta de noite já depois de tudo terminado o serviço de casa fui pro quarto ver minha televisão. Tenho TV toca-disco com rádio e gravador que eles me deram. Nessa noite me voltou o vestido na cabeça e eu não percebia que nem prestava atenção no filme e já era quase meia-noite e eu nem sentia sono eu que sempre durmo às dez. Só pensava no vestido mas como era lindo! Tão simples e lindo. Vermelho. 500. Como que eu ia pedir não tinha coragem. Iam ficar magoados isso é ingratidão o que é. Pedi à padroeira que me livrasse de pensar assim à toa e fiz uma oração agradecendo a Deus que eu tinha mais era de agradecer da sorte que eu tinha quando tanta gente que nem eu passa fome lá fora e não tem onde morar nem o de vestir e gente órfã também que ninguém dava nada e nem tratava que nem filho.

Mas então quando ainda eu rezava e agradecia levei um susto de baterem de leve na porta. Abri depressa que pensei que precisassem de mim mas o primo das meninas que entrou sozinho me olhando bem nos olhos mas de rosto amigo e bonito. Fiquei com vergonha que eu já estava de camisola e pensei de ser a patroa ou uma das meninas.

“Deixa eu ficar aqui com você”, ele me falou. “Quero só conversar.”

Falei que não que não podia que eu ia dormir que ele tinha o quarto dele lá dentro lá em cima. Mas ele pediu só pra ver um pouquinho de televisão e eu comecei a tremer que ele fechou a porta de depois de entrar. Aí falou que as meninas eram todas umas vaquinhas vagabundas e mijonas (Deus me perdoe!) e andavam agitando o rabo com qualquer babaca por aí mas que não queriam era nada com ele. Imagina que as meninas tão de boa família assim e educadas que nem eu na fé cristã iam dar de sair e… Deus me livre de pensar delas assim! E ele ficou falando e eu ouvindo. Ia acender um cigarro mas eu pedi que não que me fazia mal e ele guardou e não acendeu. Aí pediu pra eu contar o filme e eu fui contando como eu lembrava esquecendo pedaço e voltando pra emendar e ele ouvia e perguntava. Falei de novo que eu ia dormir, que ele devia ir subir e dormir também. Ele disse não, era cedo, só queria conversar mais, estava querendo não ficar sozinho muito, se ele podia pelo menos assistir o filme comigo, eu disse então certo, só o filme então, já estava mais da metade mesmo, mas depois eu tinha que dormir mesmo e ele também. Ele ficou quieto, assistiu mais partes do filme. Mas aí perguntou de novo se eu não tinha sono toda noite e eu não entendi. Ele perguntou se eu tinha sono ou ficava pensando coisas… Mas que coisas? Um monte de coisas, coisas de pensar, coisas de tirar o sono, mas eu disse que não, eu só rezo, mas não rezo muito, o resto eu faço na igreja, depois eu durmo mesmo. Mas aí eu falei mais um pouco e até perguntei de onde ele morava e estudava. Ele foi falando. Mas parava logo, fazia uma careta bem rápida e dizia que isso não tinha importância nada. Eu falei que eu também estava tudo bem. Que as pessoas daquela casa eram boas demais pra mim. Que as meninas me davam tudo e… De repente ele me tapou a boca com um beijo, quase caiu em cima de mim, e me prendeu os braços com força que eu não conseguia me livrar. Forcei de debater e caí com ele no chão sem ele me largar. Então ele puxou a toalhinha que forra o criado e derrubou o terço o evangelho a imagem da santa minha padroeira tudo no chão e ela quebrou a cabeça e rolou pro canto mais escuro que nem eu via mais. Amarrou na minha boca a toalhinha e me prendeu a voz de tão firme que eu não podia tirar com o dente nem gritar. Meu coração pulava e pulava de medo e horror! Gritava sem nada de sair grito e ele me disse que não gritasse por favor. Mas eu esperneava e batia nele de joelho e pontapé mas ele forte que nem parecia, era forte mesmo e eu não, até que me arrancou a camisola a calcinha e me jogou na cama e me prendeu duma vez, embaixo dele, eu não conseguia mais sair, me prendeu duma vez, assim mesmo. E eu senti que doía de calor por dentro quando ele me entrou sem nem esperar muito e me sangrou de tudo que era sensação tão forte de úmido e quente que eu nem sabia mais o que fazer nem pensar. Chorava e esperneava de desespero e dor que não queria aquilo nem daquele jeito Deus do Céu, mas de jeito nenhum! Não era meu o pecado, era dele, mas eu estava junto. E sentia tudo descontrolado e Deus sabia no fundo da tentação que eu sentia e aquele calor de afogar a garganta, pois Deus não tudo pode, vê a gente por dentro? E ele falava coisas do meu corpo e corria a mão nele todo. Falava bem que nunca ninguém tinha falado assim daquele jeito do meu corpo antes e isso me dava mais calor e coisas que eu nem sei de dizer como são. E falou no meu ouvido tanta coisa que moça não pode falar no meio da respiração forte dele. E quente que também babava no meu rosto meu pescoço sua gosma de cigarro e homem aceso. Me enchia de horror mas me virava outra de tanta sensação tão assim que eu não conhecia.

Depois de tudo que eu nem me mexia mais de choro e cansada de dor e sangue e uma delícia estranha de só ver em moça de filme e levar a gente pro céu ele me soltou desamarrou minha boca pra eu respirar direito que sabia que eu não ia gritar mais. Virei na cama de vergonha senti o cheiro do meu sangue no lençol enfiei a cara chorando de soluço no travesseiro. Então ele pôs a roupa dele e chegou perto me deu um beijo no ombro nas costas e enfiou uma nota dobrada na gaveta do criado.

“Estou de passagem. Vou embora amanhã”, ele me falou. “Isso é pra você comprar um presente. Não esquece que é tudo segredo nosso. Ouviu? Não esquece.”

Sexta-feira

Acordei muito cedo lembrei tudo aquilo de ontem e chorei de vergonha e angústia mas lembrando também de como foi tão estranho depois de ele me render na cama e me encher o coração de ar e a boca de saliva que eu fiquei atordoada e perdida e gemia de medo e gosto. Troquei o lençol com meu sangue arrumei o quarto. Tentei consertar a imagem não consegui. E deixei encostada na parede pra não cair. Meu coração doía de remorso e pecado vendo ela assim trincada e esfolada. Pensei nele de novo. Pensei em mim. Pensei nele o dia todo. Pensei que era segredo, tinha que ser tudo segredo, pelo amor, pelo amor de Deus! Que mais eu pensava? Que mais não eu lembrava de remorso, que tantas e tantas muitas vezes pensei de novo? Não sabia nem mais. Mas… aí lembrei da nota na gaveta. E abri e peguei pra ver na mão. O rosto de um homem pacato e bom e o desenho colorido dum beija-flor. Fiquei olhando e olhando os dois lados. 500.

Sábado

Deus meu eu queria era apagar tudo da cabeça e não conseguia parar de pensar. Queria contar pra alguém mas como que eu ia poder contar isso tudo? Morria de vergonha de mim. Entendi que não podia contar nada era pra ninguém e só sei que eu saí pensando que estava tudo escondido no meu quarto em mim mesma que ninguém nunca ia lá. E o que eu tivesse que esconder no meu quarto eu ia esconder que ninguém mais sabe nem vê. Só eu. Botei um vestido mais bonito e mais caro que o da vitrine. Que me deram e tantos outros. Que sempre me deram tudo. Lembrei da nota e o beija-flor escondido na bolsa e meus pés iam me levando no caminho da rua das lojas que eu desde cedo quando acordei já sabia o que era que eu queria fazer.

Inconsistência dos retratos – Guia de leitura

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Imagem: David R. Darrow. Curl.

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