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Lisette Maris. Objetos que se movem (4/15)
Ela me abraça como há muito não faz, realizada e nervosa, contagiada pela euforia reinante, com o veneno do triunfo.
Um casal de mesma estatura, ambos exageradamente polidos e atentos às normas da boa educação, aos bons costumes. Muitos anos de convivência, é isto: contagiaram-se mutuamente com vícios de perfumaria. Devem ter mais de cem anos. De convivência, digo. O de calva, terno cinzento de paletó aberto, viúvo de olhos miúdos, orelhas vermelhas, papada oscilante e barriga respeitável: com ele eu simpatizo um pouco. Parece feliz. Terceira a chegar, óculos de aro fino, penteado fazendo crer que seja mais jovem e bonita, modificando-se habilmente a cada semana, enquanto envelhece e fica mais feia, essa que fala muito e garante estar sempre bem com a vida, embora não tenha nenhum amante há uns cinquenta anos, desde que o marido enfiou-se num navio para a Ásia, creio, sem que ela soubesse. Chegam outros, o grupo se completa. Não tenho como escapar desta vez.
“Então?”, sorri o viúvo da papada ao apertar-me a mão. “Teremos a honra de sua companhia esta noite?”
Crio coragem e lhe digo, à parte:
“Eu não queria. Juro que não.”
Sei que ele é sincero e revela alguma estima que os outros naturalmente não têm por mim. O único ali em quem eu confio.
“Se quer saber, é bom que aproveite a oportunidade. Você é muito jovem, pode ainda desenvolver-se mais do que os outros, se tiver boa vontade. Num mundo como este, onde tantos de nós vagam na escuridão, o crescimento espiritual não tem preço. Pense nisso.”
Minha mãe aproxima-se por trás, pousa as duas mãos em meus ombros.
“Ele ainda não vê como vemos, mas sei que, com o tempo… Tire o gorro, vamos! Logo nos sentaremos à mesa.”
Ele me olha dos seus cento e vinte anos, deixando escapar um sorriso resignado e a expressão de pálpebras estreitas na qual se lê que conhece infinitos nomes, sobrenomes e rostos, com isso assumindo em seu dissimulado tédio que, quanto a esse ponto, não há nada a fazer.
Sessão. Para meu espanto, maior o deles, o cinzeiro põe-se a vibrar sobre a mesa, em ritmo crescente; desloca-se perfazendo uma reta e cai sobre um dos tapetes prediletos de mamãe, que agora queda paralisada, numa expressão que não saberei definir. Todos se reúnem em torno das cinzas – o objeto exausto, agora inerte. Comentam esse fato desastradamente, presas do entusiasmo e da felicidade. Minha mãe, como os outros, impressiona-se muito com esses truques vagabundos que não nos ajudam em nada. Não alteram nossas vidas. Nem o inverno. E nada significam para mim. Ela me abraça como há muito não faz, realizada e nervosa, contagiada pela euforia reinante, com o veneno do triunfo.
Lisette Maris em seu endereço de inverno (4/15)
Lisette Maris 5. Enquanto temos carne, ossos… e sangue – próximo
Lisette Maris 3. Persistência do inverno – anterior
Imagem: Joan Miró. Azul 3. 1961.
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