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Lisette Maris. Persistência do inverno (3/15)
Olhos muito claros, azuis e intensos, ela parece atrair luz.
O inverno já dura treze anos. Ninguém sabe por que isso acontece, e também não se sabe quando vai acabar. Mas ninguém se espanta, ninguém nada pergunta. Nosso velho vizinho, em sua ronda diária, parece ignorar o fenômeno, e força o cão a segui-lo. Vira a esquina e não me vê, por sorte. Sigo o caminho oposto, rumo ao descampado que limita a cidade e lhe abre o mundo, à barraca onde Dalma vive com o gigante. O inverno ainda me intriga.
Primeiro o gigante. Diego não me cumprimenta, apenas constata minha chegada. A bruma que nos envolve é a mesma que nubla seu silêncio. Dalma, como se visse pelos olhos dele, surge à entrada da barraca. Sorri, apenas dilatando a boca fechada, e se aproxima.
“Pensei que não viesse nos ver mais.”
Olhos muito claros, azuis e intensos. Dalma parece atrair luz. A neblina em sua respiração, mesclando-se à bruma mais ampla e à claridade mais tênue, parece diluir-se como as palavras. Eu, sem tirar as mãos dos bolsos, sorrio da mesma forma. Assim nos encontramos sempre. Diego curva sua volumosa figura e organiza uns gravetos que mantenham a fogueira diáfana, quase transparente. Dalma senta-se ao meu lado no mesmo velho tronco caído. Nunca perguntei a idade deles, mas sei que são muito velhos. Devem ter quase uns 30 anos cada um. Sinto uma estranha atração por eles, e cheguei a pensar que pudessem, de alguma forma, em meio à neblina e ao inverno, passar-me, aos poucos, um grande segredo.
“Diego não gosta que eu venha.”
“Não diga isso. Ele emudeceu desde que começou o inverno, você sabe. Então, terminou a história?”
“Ainda não.” Uma pausa. E passei a falar daquela outra coisa sobre a qual pretendia falar. “Ela tem deixado outra vez aquele livro sobre o meu.”
“Que livro?”
“De Karl Allen, aquele dos espíritos. Uma espécie de bíblia mais moderna e menos chata, o que não ajuda muito nem faz dele a oitava maravilha mais cansativa do mundo. Sei disso porque ela já me obrigou a ler alguns trechos.”
“O que achou?”
“Karl Allen tem respostas para tudo, o que é ridículo. Mistura suas crenças a argumentos científicos, e acaba tudo numa grande confusão que eles chamam estudo. Claro que o grupo leva tudo muito a sério. Todos eles leram o livro. Inteiro, até o fim. Para se ter uma ideia, uma das amigas dela anda pesquisando sobre duendes, espíritos da floresta e coisas do tipo. É uma sorte que não estejam todos internados, afinal são adultos.”
“E as sessões? O que eles fazem?”
“No momento, estão empenhados em mover objetos com a energia da mente. Há um capítulo de Karl Allen sobre isso. Começaram com pequenas rolhas e tampinhas. Chegaram aos pratos de sopa. Travessas, terrinas, tigelas. Nunca conseguiram mover uma peça. Mas não desistem.”
“Somos todos obstinados”, diz Dalma num sorriso melhor. “Então, trouxe algo para eu ler?”
Tiro do bolso um maravilhoso poema que escrevi especialmente para impressioná-la. Sempre fico um pouco constrangido quando ela lê em voz alta.
“O menino vegetal busca na caixa seu cartão de natal./ Mas só o que ganhou foi um zero postal./ Enquanto sonha assim seus dias vários,/ outro zero percorre os calendários. Por que os calendários?”
“Aquela argolinha vermelha que mudamos todo dia no calendário de parede. Não passa de um zero, mesmo que os dias sejam numerados.”
Mostro-lhe outro.
“Nascer, viver. / Morrer não existe.”
Dalma reflete em silêncio. Pensa. Não sabe o que dizer. Não diz nada.
Lisette Maris em seu endereço de inverno – Guia de leitura
Lisette Maris 4. Objetos que se movem – próximo
Lisette Maris 2. Damares – anterior
Imagem: Wassily Kandinsky. Azul 1.
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