Office in a Small City por Edward Hopper

Por onde as pessoas vivem…

Sonhei certa vez que encontrava, na caixa de correspondência, entre a profusão de papel picado, todas as cartas que enviara no decorrer da vida.
Nada muito significativo. Apenas mais um pesadelo.

Lee Krasner. Paisagem gótica. 1961.

Cartas que lhe escrevi foram destinadas a mim mesmo. Sonhei, certa vez, que encontrava, na caixa de correspondência, em meio a uma profusão de papel picado, todas as cartas que enviara no decorrer da vida. Nada muito significativo. Apenas mais um pesadelo.

“Talvez aprecie mais o segundo soneto.”

O segundo. É um soneto. Preciso concentrar-me.

Sinto-me disperso.

       Cansado.

                   Aonde nos levará a poesia?

       O que é a poesia?

E a música?

Às vezes, acredito que o homem haverá de encontrar-se, pois

“Atente para os versos finais.”

Por outro lado, é possível que não nos encontremos, e tudo terá sido em vão.

“O que acha?”

Não sei. Quem sabe? O futuro? É só um palpite. Não o meu futuro. Há a minha morte. Há a noite. A Lua. O amanhecer. O tempo em que não havia vida na Terra. Nem o medo. Nem

“Terminou?”

Não. Ainda. Parece incrível que eu tenha que morrer. E tudo o que vivi, memórias e situações,

“E então?”

Também é notável que alguém sinta medo, pois basta um olhar sobre os vastos milhões de anos que

Mas as pessoas vivem

Por toda parte

Por onde a vida passa

Por onde as pessoas vivem

O poeta

Por onde passa

“Por onde as pessoas passam…”

“O quê?”

“Por onde as pessoas vivem…”

“Olhe para mim. Está passando bem?”

“Por onde as pessoas vivem, o poeta passa.”

“O quê?”

“Por onde…”

“Entendi, entendi. Isso é seu?”

E eu, que havia sido uma criança, um bebê saído do ventre de minha mãe, surgido de lugar algum, eu que não era ninguém

“A métrica. Acho que a métrica pode ser melhorada. A ideia parece boa. De fato, em face da morte, não deve haver vanguardas nem aventuras artísticas que não sejam vãs. Mesmo com relação à vida, aliás. Mesmo porque…”

Tive de recriar meu amigo Glauco Pinheiro em algumas passagens. Ele não me proporcionava o suficiente para deflagrar diálogos menos pobres. Tenho que admitir, ele acabou um tanto exagerado ou apenas caricatural (um medíocre incompleto, pior do que eu), mas também não são tão fortes minhas obrigações para com a grande arte, salvo seja. Tanto faz, para mim, se todos os escritores e poetas acabarem no Inferno. Só não posso dizer-lhe isso, coitado. Tão dedicado…

A seta de Verena – Guia de leitura

68. Américo Cabral assombra em vida – sequência

66. Modelos de cartas inúteis – anterior

Sobre o livro

 Imagem: Lee Krasner. Paisagem gótica. 1961.

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