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Lisette Maris. A escuna ancorada (1/15)
Vou me encontrar com Damares.
Tive sempre o gosto por estas histórias. Tanto e tão bem que finalmente perdi todo poder sobre mim mesmo.
– Fiódor M. Dostoiévski, Memórias do subsolo
A casa onde moro é uma escuna, mas poucos compreendem. Uma fragata, já disseram. Um galeão, um bergantim, um clíper. Nada disso. Uma escuna. Eu me distraio vendo-a singrar o Pacífico, rumo aos ancoradouros secretos da ilha Ota. Vista do outro lado da rua, uma caravela bojuda e talvez imponente. Mas sem vida e sem velas, a mastreação entrecruzada de cordames e fibras apodrecidas, desnudada pelo outono. Pelo inverno, pode ser. Não é a oitava pior maravilha do mundo. Mas tem seus méritos e algum conforto.
Volto-me ao caminho, quero esquecer esse endereço por enquanto. Vou me encontrar com Damares. Aperto a gola do casaco contra a brisa glacial, sigo por minha rua, de árvores esparsas, gramados das casas confundindo-se e repetindo-se até o vértice de sua perspectiva. Assim é a minha rua. Em manhãs assim frias, assim mais solitária. Só nosso velho vizinho, boina e cachecol, cruza a calçada levando seu cão, que parece indiferente ao inverno e aos caminhos. Não tenho a menor vontade de cumprimentá-lo, mas ele não pensa assim.
“Bom dia, jovem. Como vão as coisas?”
“Bom dia. Como vai o senhor?”
“Senhor está no céu”, ele responde com a cansativa humildade dos hipócritas. E segue seu caminho, forçando o cão a acompanhá-lo.
Vou pensando em Damares, algum receio por este nosso primeiro encontro. Nunca tive uma namorada antes, mal sei conversar com garotas da minha idade, talvez nem ela queira ser minha namorada, mas afinal convidou-me a vê-la. Também persistem, fragmentadas, imagens da noite anterior: a sessão com minha mãe e seu grupo, pratos e objetos que eles tentam mover com a força da mente e a ajuda dos espíritos; persiste o pesado volume, A carta dos espíritos, por Karl Allen, em 94a edição, que ela esqueceu no criado-mudo sobre meu livro predileto, O otário da ilha Ota, uma eletrizante aventura de corsários em alto-mar e em terras virgens de uns arquipélagos incrivelmente longínquos; persistem as ilustrações do capítulo que li ontem, um dos mais importantes. Nele, uma primeira expedição traz da ilha Ota um razoável carregamento de pratarias sem suspeitar que deixou para trás o tesouro maior, o que seus mapas grosseiros não lhes facilitam. Aperto a gola, outro golpe cortante. Não quero mais pensar na noite passada, em minha mãe, a sessão e a escuna ancorada. Vou me encontrar com Damares.
Lisette Maris em seu endereço de inverno (1/15)
Lisette Maris 2. Damares – próximo
12. Vista do mirante – anterior
Imagem: Helen Frankenthaler. Sem título.
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