Office in a Small City por Edward Hopper

Modelos de cartas inúteis

Entendo a morte, quase a aceito, como indivíduo, cidadão e animal.
O que não deixa de ser notável, pois os animais não aceitam a morte.

Piet Mondrian. Composição com vermelho, azul, amarelo.

Sobre a paz e a justiça que você menciona, creio que a inteligência, e não o amor, é o que pode salvar a humanidade. As necessidades e conflitos que movem o povo às reivindicações e ajustes cíclicos são suplantados pelas doutrinas que controlam seu comportamento. Um povo apaziguado é um povo morto. No fundo, acho natural (natural, eu disse, não justo) que os mais inteligentes dominem os menos inteligentes, pois todos nós nos beneficiamos dos ignorantes, mesmo os que não concordam com isso. A ignorância alheia, sei que você sabe, é motivo de grandes lucros financeiros e manutenção de posições invejáveis. O mundo poderia ser outro, mas a inteligência ainda é o maior dos demônios. À parte minhas opiniões, tudo isso continua ocorrendo, e é o que sempre ocorre. Talvez a evolução do pensamento coletivo possa um dia reverter ou, digamos, equilibrar essas relações de domínio. Eu disse talvez.

Você insiste em afirmar que Jesus, o Nazareno, é o filho de Deus, mas A Bíblia nos diz que ele tinha pai, era um carpinteiro. Já lhe falei mais de uma vez que para mim tudo é natural, por isso pouco me impressionam a conversão da água em vinho, a ressurreição de um lázaro (que tornaria a morrer) e outros milagres sem propósito. Está irritado? Não foi intenção. Mudo de assunto, quer ver?

Assim como o amor ao dinheiro é uma variante doentia do instinto de preservação, a noção de eternidade individual não passa de uma projeção de nossa memória atávica de quando ainda éramos poeira estelar. Como a matéria é eterna no universo, a vida, que se faz de matéria e dela se nutre, supõe-se eterna em sua composição-ser. Uau! Que teorias! O que acha?

Como a memória tem certo grau de persistência quanto ao passado, torna-se difícil aceitar a morte como o fim imediato de alguém, pois imaginamos esse alguém do avesso, isto é, como se continuasse existindo em alguma parte, isso até que desapareçamos também, ou o esqueçamos. Concordo, parece cruel demais. Vou pensar em uma alternativa, a vida não pode ser tão pobre. Tomara que não.

Entendo a morte, quase a aceito, como indivíduo, cidadão e animal – o que não deixa de ser notável, pois os animais não aceitam a morte. Mas não como artista. Há sempre algo que eu queira buscar, compreender, experimentar. E é isso o que a morte virá aniquilar, no dia qualquer em que vier.

Sou alérgico a inseticidas, por isso elimino os pernilongos com golpes de toalha, uma toalha de rosto que dobro de maneira adequada. Aposto que você iria gostar de me ver girando pelo quarto, depois de tantas divagações, armado com uma velha toalha, a caçar pernilongos.

Um forte abraço!

Só me faltava esta. Uma carta.

A seta de Verena – Guia de leitura

67. Por onde as pessoas vivem… – sequência

65. Autocondenação e conflitos continuados – anterior

Sobre o livro

Imagem: Piet Mondrian. Composição com vermelho, azul e amarelo. 1921.

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