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Quase sem rumo
Na mesma manhã, ele se lembrava, em que ela em especial lhe sorrira, demorando-se a recolher os dentes sob os lábios dilatados, depois conservando o sorriso ainda na boca fechada, ele lhe fizera, em um guardanapo de papel, o seguinte desenho (com a correspondente inscrição):
XÍCARAS A JATOVIAGENS FASCINANTES PODEM NASCER
DO CAFÉ DA MANHÃ
Confessara-lhe que tinha uma coleção de escandalosos desenhos sem nenhum propósito aparente, o que só se revelava em determinados momentos, como aquele, prevendo que ela lhe diria, como todos, que ele era engraçado, inteligente ou idiota, além de lhe perguntar, fatalmente, por que não havia tentado ser desenhista, ao que ele responderia de maneira bastante simples, como nesse caso, porque, se fosse desenhista, não poderia desenhar coisas assim.
“Estou olhando pela janela agora. E você?”
“Estou”, ele olhando as persianas cinzentas, fechadas.
“É um domingo muito bonito de primavera, olha só. Já é primavera, sabia? Até o Sol parece celebrar esta manhã especial. Não acha?”
“Claro”, com uma enorme boca de sono. Procurou o relógio sobre o criado-mudo. “Escuta: você sabe que horas são?”
“Não. Não quero saber. Tive uma longa noite de insônia e pensei muito. Vou me mudar daqui.”
“…”
“Estou de mudança. Ouviu? Vai dizer alguma coisa?”
“Ouvi.”
“Acho que já é hora de eu tentar entender o que está se passando comigo e por que tenho sempre vivido em linha reta, como você diz, como todos os que tomam trens e acreditam nos padres.”
“Você nunca me disse que acreditava nos padres.”
“Claro que não, essa expressão é sua.”
“Ah… é mesmo.”
“Mas também não é possível viver como você, quase sem rumo.”
“Como é? Sem rumo… Por que não?”
“Você sabe que não, mesmo que não admita. Por isso é que voltou comigo no trem daquela vez, quando me acompanhou até a plataforma e… Por isso deitou a cabeça no meu ombro e seguiu em silêncio durante quase todo o trajeto, lembra? Que foi? Está me ouvindo?”
“Nada.”
“Você já tinha começado a falar mais uma vez naquele seu amigo, aquele do acidente de moto, depois parou. Talvez ele fosse alguém que confundisse você ainda mais.”
“O Bruno? Não, não. Nada disso.”
“Aquele, do acidente? Da moto?”
“Sei. Esmagado por um caminhão. Ele mesmo. Mas isso foi há três meses…”
“Você voltou no trem. Ficou comigo.”
“Verdade, não pude evitar. Mas em outra história você entra sozinha no trem, e nós só tomamos café naquele lugar-sempre-o-mesmo.”
“O quê?”
“Conto depois, minha bela. Prometo.”
“Do que eu falava mesmo?”
“Sol na janela…”, ele esfregando um olho. “Padres… Trens…”
“Vou sair daqui hoje mesmo. Amanhã ligo na transportadora, eles fazem o resto.”
“E o seu noivo?”
“Vai herdar a seguradora do pai, é claro. Ele não precisa mais do que isso, é o que parece. Não precisa de mais nada. Não precisa de mim.”
“Estela… Não chore. Você não sabe o quanto isso me irrita.”
“Não estou chorando. Eu me resfriei durante a noite, descalça pela casa. O piso da cozinha… Ainda faz frio de madrugada, sabia?”
“Não sabia. Tenho tido um sono pesado, escuro. Uma âncora. Sem mistificação, claro.”
“No seu caso, é um mau sinal. Escuta, vou procurar um hotel. Você me encontra ainda hoje?”
“Hoje”, ele sem procurar disfarçar outro escandaloso bocejo.
107. A esperança lhe arranha a testa – anterior
Aqui termina o romance Os últimos dias de agosto. A publicação no blog iniciou-se com o post: 1. Os últimos dias de agosto. Abertura.
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