Office in a Small City por Edward Hopper

A esperança lhe arranha a testa

Primavera. Uma esperança, não é? Outro lapso, claro. Vamos, vamos.
As esperanças não são nada, lembra?

Vincent van Gogh. Arles florida na primavera. 1888

Dia de sol ameno, correntes menos frias e temperatura média, facilitando-lhe afastar pensamentos idiotas desagradáveis enquanto lhe proporcionavam pensamentos idiotas agradáveis. Agosto ia ao fim. Como parte da confusão climática que o planeta vivia nos últimos anos, a primavera parecia antecipar-se aos calendários. “Não posso morrer agora”, pensou ridiculamente. “Não antes de tentar, não antes de reescrever meu diário.” Voltavam-lhe dias de inverno e outros que… “Mudança de estação, reconheço, temos lapsos assim, de memória e esquecimento.”

No caminho, quase teve a testa arranhada por uns galhos baixos de árvore. Ramagens pendentes, carregadas de folhas e brotos, sugerindo setembro, a primavera próxima. “Primavera. Uma esperança, não é? Outro lapso, claro. Vamos, vamos. As esperanças não são nada, lembra?” Não, não são nada. E quase lhe arranham a testa.

Por fim a praça triangular, a estátua do soldado… “Não importa, já está morto.” Junto ao Centro Cultural, as pessoas se deslocavam tranquilamente, entre conversas, sorrisos e gestos que antes… Sim, ali estava ela, distraída – e Júlio serviu-se dessa chance para observá-la enquanto se aproximava furtivamente. Uma brisa, os cabelos. O vestido pela primeira vez aos olhos dele: bastava ela vestir-se de primavera para que a tarde fosse outra. Mas não ele, ainda cultivando arranjos e palavras mesmo que não as dividisse com alguém. Ali estava ela. Chuvas que a fizeram. Estela sendo o que era, separada do cenário urbano, a folha tenra da alface. Parecia ensaiar uma meia-volta, sapatilhas que tornava flexíveis ao insinuar o movimento.

Ele, a sua esquerda: “Lindo dia, senhorita.”

“Júlio”, sorriso de surpresa, rosto a um beijo. “Então, finalmente me encontrou. Você está atrasado, não acha?”

“Quem sabe? Nunca o suficiente.”

Agora que a via de perto, notava um broche à altura do seio. Quem sabe uma estrela distorcida. Um trevo. Não. Uma flor estilizada. Grande coisa. Estela o fixava por um instante, detendo, à sua maneira, a roda dentada e a máquina do dia. Que tem uma estrela a ver com flores? Não sei. Não quero saber. Pensava ouvir dos olhos de Estela o que uma vez ouvira do silêncio de Vanda: “Aí está você. Esta sou eu.”. E Treze lhe sorrindo no mesmo sorriso. à sua frente, enquanto desta vez lhe dizia que não era tão tarde quanto imaginava. Pois não havia a sensação do surdo que ouve música pela primeira vez? O cego curado que contempla o dia? Aqui está, Júlio Dias, teu horizonte. Não propriamente essa mulher, que certamente é parte disso. Mas outro momento sem par entre os dias: teu dia.

“A sessão já vai começar. É melhor nós…”

“Melhor nós…”, ele repetindo quase sem perceber, enquanto, ainda de frente a ela, observava a curva de seus ombros.

Júlio a absorvia com olhos que adivinhava mais claros, dilatados talvez pelos fogos e fungos que são o tempo e toda parte de ter sido o que fora. O que havia sido sua vida até então, a crise dos últimos meses, seu precário conhecimento de mundo, um produto da natureza sobre si mesma, gestos menores e maiores deflagrando os dias, o universo ansioso de interpretar-se. A si mesmo, todos os gestos.

“Que foi? Já não nos vimos antes?”, Estela, simpática, referindo-se à demora dele em dizer algo, em observá-la.

“Sim. De alguma maneira.”

Distraíra-se, daí a demora, que secretamente satisfazia um repentino desejo de desenhar com o dedo sobre o rosto de Estela, percorrendo cada traço característico, enfim, vontade de desenhar o que já era ela. Lembra de quando pedira ao pai que o fotografasse junto aos seus desenhos mais coloridos?

“Podemos ver a exposição mais tarde, quer?”, Estela levando a mão aos cabelos, contra a brisa outra vez.

Havia sempre uma exposição em lugares como aquele. Júlio observou a fachada do Centro, olhou ao redor, as pessoas que entravam e saíam, agora sem pressa.

“Você já deve ter vindo muitas vezes aqui, imagino.”

“Muitas”, Estela dando-lhe o braço. “Mas hoje tenho a impressão de que este lugar seja outro.”

Os últimos dias de agosto – Guia de leitura

108. Quase sem rumo – sequência

106. Um dado de um jogo de dados – anterior

Imagem: Vincent van Gogh. Arles florida na primavera. 1888.

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