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A esperança lhe arranha a testa
As esperanças não são nada, lembra?
Dia de sol ameno, correntes menos frias e temperatura média, facilitando-lhe afastar pensamentos idiotas desagradáveis enquanto lhe proporcionavam pensamentos idiotas agradáveis. Agosto ia ao fim. Como parte da confusão climática que o planeta vivia nos últimos anos, a primavera parecia antecipar-se aos calendários. “Não posso morrer agora”, pensou ridiculamente. “Não antes de tentar, não antes de reescrever meu diário.” Voltavam-lhe dias de inverno e outros que… “Mudança de estação, reconheço, temos lapsos assim, de memória e esquecimento.”
No caminho, quase teve a testa arranhada por uns galhos baixos de árvore. Ramagens pendentes, carregadas de folhas e brotos, sugerindo setembro, a primavera próxima. “Primavera. Uma esperança, não é? Outro lapso, claro. Vamos, vamos. As esperanças não são nada, lembra?” Não, não são nada. E quase lhe arranham a testa.
Por fim a praça triangular, a estátua do soldado… “Não importa, já está morto.” Junto ao Centro Cultural, as pessoas se deslocavam tranquilamente, entre conversas, sorrisos e gestos que antes… Sim, ali estava ela, distraída – e Júlio serviu-se dessa chance para observá-la enquanto se aproximava furtivamente. Uma brisa, os cabelos. O vestido pela primeira vez aos olhos dele: bastava ela vestir-se de primavera para que a tarde fosse outra. Mas não ele, ainda cultivando arranjos e palavras mesmo que não as dividisse com alguém. Ali estava ela. Chuvas que a fizeram. Estela sendo o que era, separada do cenário urbano, a folha tenra da alface. Parecia ensaiar uma meia-volta, sapatilhas que tornava flexíveis ao insinuar o movimento.
Ele, a sua esquerda: “Lindo dia, senhorita.”
“Júlio”, sorriso de surpresa, rosto a um beijo. “Então, finalmente me encontrou. Você está atrasado, não acha?”
“Quem sabe? Nunca o suficiente.”
Agora que a via de perto, notava um broche à altura do seio. Quem sabe uma estrela distorcida. Um trevo. Não. Uma flor estilizada. Grande coisa. Estela o fixava por um instante, detendo, à sua maneira, a roda dentada e a máquina do dia. Que tem uma estrela a ver com flores? Não sei. Não quero saber. Pensava ouvir dos olhos de Estela o que uma vez ouvira do silêncio de Vanda: “Aí está você. Esta sou eu.”. E Treze lhe sorrindo no mesmo sorriso. à sua frente, enquanto desta vez lhe dizia que não era tão tarde quanto imaginava. Pois não havia a sensação do surdo que ouve música pela primeira vez? O cego curado que contempla o dia? Aqui está, Júlio Dias, teu horizonte. Não propriamente essa mulher, que certamente é parte disso. Mas outro momento sem par entre os dias: teu dia.
“A sessão já vai começar. É melhor nós…”
“Melhor nós…”, ele repetindo quase sem perceber, enquanto, ainda de frente a ela, observava a curva de seus ombros.
Júlio a absorvia com olhos que adivinhava mais claros, dilatados talvez pelos fogos e fungos que são o tempo e toda parte de ter sido o que fora. O que havia sido sua vida até então, a crise dos últimos meses, seu precário conhecimento de mundo, um produto da natureza sobre si mesma, gestos menores e maiores deflagrando os dias, o universo ansioso de interpretar-se. A si mesmo, todos os gestos.
“Que foi? Já não nos vimos antes?”, Estela, simpática, referindo-se à demora dele em dizer algo, em observá-la.
“Sim. De alguma maneira.”
Distraíra-se, daí a demora, que secretamente satisfazia um repentino desejo de desenhar com o dedo sobre o rosto de Estela, percorrendo cada traço característico, enfim, vontade de desenhar o que já era ela. Lembra de quando pedira ao pai que o fotografasse junto aos seus desenhos mais coloridos?
“Podemos ver a exposição mais tarde, quer?”, Estela levando a mão aos cabelos, contra a brisa outra vez.
Havia sempre uma exposição em lugares como aquele. Júlio observou a fachada do Centro, olhou ao redor, as pessoas que entravam e saíam, agora sem pressa.
“Você já deve ter vindo muitas vezes aqui, imagino.”
“Muitas”, Estela dando-lhe o braço. “Mas hoje tenho a impressão de que este lugar seja outro.”
Os últimos dias de agosto – Guia de leitura
108. Quase sem rumo – sequência
106. Um dado de um jogo de dados – anterior
Imagem: Vincent van Gogh. Arles florida na primavera. 1888.
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