Office in a Small City por Edward Hopper

Autocondenação e conflitos continuados

Não há conclusões, mas continuidade.
Nenhum conflito encontra seu fim, mas permanece para o decurso de outras vidas.

Alfred Stevens.

O JOVEM QUE LÊ. Incluir alusões gráficas a frontispícios. Talvez festões. Isso! Bordaduras, volutas… Não, não exageremos. O jovem que lê, dar-lhe nome, desencadeia, com suas leituras, a morte, em circunstâncias misteriosas, dos autores. Os mais antigos, com textos de mais de vinte anos, sucumbem com facilidade, embora alguns resistam. Um deles, não assimilado satisfatoriamente de uma primeira investida, morre por ocasião de sua releitura, meses depois. A um conterrâneo, nem encontram o corpo – e uma morte sem corpo nunca é uma morte completa, não como a querem os homens. Em uma só semana, massacra um romancista épico, um novelista policial e dois poetas de vanguarda. O ensaio Carta a um pacificador assassinado, que anda de mão em mão pelos corredores da escola, não lhe custa mais que alguns minutos: belo aos ingênuos, não passa de uma carta redundante, temperada com metáforas aborrecidas e previsíveis. Por fim, aproxima-se do papel, suspeitando que inicia com tal gesto seu processo de autocondenação, até que outro possa também encontrá-lo sob a sombra das mesmas palavras. O inesquecível crepúsculo precede a noite de seu primeiro texto. Sente, ao abrir a janela, o vento a esbofetear-lhe o rosto, como uma entidade concreta. Um agrupamento de nuvens escuras move-se como junto ao solo e como em marcha, em parte flutuando, em parte rastejando. Não há conclusões, mas continuidade. Nenhum conflito encontra seu fim, mas permanece para o decurso de outras vidas, assim como sua obra de alguma forma ficará, prova indiscutível de também ele haver sido assassinado um dia.

Conheço essa batida. Da última vez que esteve aqui, Glauco Pinheiro estendera-me um cartão seu, uma fotocópia mal recortada, com endereço e telefone datilografados, sendo o nome urdido com a caligrafia dos carimbos encomendados. Imaginei que ele ficasse cortando tais papeizinhos com uma régua, e isso me lembrou a fábrica de balanças, Absalão e outras visões melancólicas.

“Não vá me dizer que perdeu o meu cartão. Pois lhe dou outro.”

“Não perdi.”

“E não telefonou! Homem, um escritor tem de ser sociável. Você não procura ninguém, não escreve para ninguém…”

Glauco Pinheiro me escreve cartas. É a pura verdade. Eu as guardo todas, em ordem de chegada, pois sei que ele pretende publicar um dia um volume de cartas suas, e não posso negar-lhe essa felicidade. Não sei se ele entende que o estimo, e que meus sentimentos são sinceros. Tomara que não leve em conta o fato de eu nunca lhe responder. Escrever cartas, como ler jornais, é um hábito que perdi, não sei se por enquanto.

“Trouxe-lhe uns poemas.”

Glauco, meu caro

Ainda é assim que começo uma carta, talvez um sentimento incontido por nossa amizade. Que posso fazer? Todos têm suas fases, não é?

A seta de Verena – Guia de leitura

 66. Modelos de cartas inúteis – sequência

64. Dispensando a musa – anterior

Sobre o livro

Imagem: Alfred Stevens. Paisagem ao luar.

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