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Um dado de um jogo de dados
Você também provou de um veneno infalível, acreditou no que escrevi certa vez – o tempo todo em que estive sozinho à mesa deste café, revendo meu diário íntimo e tentando torná-lo melhor, recriando amálgamas, imagens de um precário cotidiano, e o personagem de ser eu próprio fora de mim, ser o que conto a mim mesmo e a você, meu estranho espelho silencioso.
Há tempos não sentia vontade de escanhoar o rosto, tornando a pele agradável ao tato. Diante do espelho, e não se perdia. “Está irreconhecível, meu velho. Não pelo rosto, entenda. Mas tomara que não dure muito: também não é justo que volte a ser um menino bem barbeado e praticante dos bons princípios só porque não quer mais embriagar-se ou brincar de morrer. Não lhe ocorre um palavrão, uma situação obscena. Está mesmo um anjo, hein? Um doce.” Só uma incômoda mas ligeira lembrança de Bruno ao observar um lado de seu próprio rosto, a linha do maxilar. O queixo, a boca… Bruno era mesmo um belo espécime. Mas de que serve a beleza? Não importava que fosse ele o feio e Bruno o belo. Havia outros como eles por toda parte, aquilo não passava de outro artifício em prol da preservação da espécie, o jogo da cauda do pavão, as borboletas de asas coloridas e tóxicas, o aroma intenso das fêmeas. Olhou-se outra vez, a claridade do dia. “Ainda estou aqui.” Um fino círculo esverdeado, talvez outra cilada entre um arranjo de reflexos, envolvia suas íris como querendo invadir o fundo brilhante e alcançar um outro, o centro. Certa vez, após a Noite das Vitaminas, lembrava-se de tê-las visto, à luz da manhã, rodeando outros círculos, próximo à pupila, seus olhos sob esses matizes, mas não tinha certeza. Agora podia vê-los nitidamente. Olhos mais claros, como os via em Augusto. Os olhos de Augusto. Seus próprios olhos. E um jogo de espelhos, um prisma ao acaso, de reflexos e incidências. Dois pontos no quadrilátero do espelho, a face de um dado. Acontecera-lhe chegar até ali. Ou sem saber buscara todo o tempo chegar, apenas aproveitando-se do acaso e do que outros chamavam destino. É o homem a face última do dado. Um dado de jogos. Um dado de um jogo de dados.
Desceu correndo as escadas, por pouco não tropeçando em Pablo e Cândido, que o fitavam com seu costumeiro sarcasmo de esfinge, incomodados por terem perturbado seu sossego. Pareceu-lhe ouvir Bruno, outro maldito lampejo: “Rapaz, eles é que sabem viver.”. Bruno era um idiota. Pablo e Cândido não sabiam viver, nem poderiam. Dois idiotas também, apenas pregados ao tempo, como recortes numa colagem. E ficavam ali, colados, até a última chuva ou dia de sol forte, até a hora que lhes coubesse deflagrar sua grande metamorfose, seu processo de podridão. “Parece que seu senso de humor está voltando, rapaz. Poeta.”
Dona Norma olhava a rua distraidamente, como se não ouvisse o rádio ao seu lado.
“Tempo bom na capital. Temperatura em elevação. Esta é a estação mais alegre da cidade.”
“Como vai, Dona Norma?” Um anjo. Um doce.
“Boa tarde, Júlio. Aonde vai bonito assim?”
“É só uma camisa que eu não visto há cinco séculos.”
“Sei. Isso é coisa de quem não vai passear sozinho. Espera aí, vem cá. Essas mangas…”
“Ah, as malditas mangas…”
Dona Norma passou a arrumar as malditas mangas.
“Já conheceu os vizinhos novos? Mudaram ontem.”
“Não diga”, fingindo-se interessado.
“Recém-casados. Ela tem só dezessete anos, ele vinte, parece. Vão ter um filho. O outro braço.”
“No apartamento do seu Coelho? Quero dizer… Onde o seu Coelho…”
“É. Acharam espaçoso o quarto. E pretendem ter mais filhos, dizem que é só o começo”, ela rindo. “Mas isso vai ser bom. Crianças dão vida ao lugar, não é?”
Coelho fora uma criança um dia. Trouxera mais vida a seus pais. Todo tipo de personalidade que o mundo já viu foi uma criança um dia. Um casal no quarto onde ele sonhava morrer. O mesmo lugar.
“Agora está melhor.”
“Obrigado, Dona Norma. Eu nunca aprendo.”
Os últimos dias de agosto
107. A esperança lhe arranha a testa – sequência
105. A um passo de seu rosto – anterior
Imagem: Juan Gris. Café-da-manhã (detalhe superior). 1914.
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