Office in a Small City por Edward Hopper

A um passo de seu rosto

Dedicava a ela, por mero machismo, o desfecho de seus duelos secretos.
Sua parcela de ridículo triunfo. O bom menino em nome da classe humana. O fiel e medíocre representante da história e de tudo o que não queria mais representar.

Robert Henri. Retrato de Doris Trautman (detalhe superior). 1928

Desceram ao subterrâneo, deixando para trás o fim de tarde nublado. Junto à faixa amarela, no extremo da plataforma e fechando o último ângulo dos pilares de concreto, ficaram observando distraidamente a aglomeração dos usuários, um grupo que se formava célula por célula, mas com notável agilidade. Estela suspirou, cansada. Corrigiu a alça da bolsa sobre o ombro. Júlio suspirou também, e enfiou as mãos nos bolsos. Ela passou a olhar a ponta dos sapatos escuros como se procurasse algo diferente neles. Ele tossiu, com a aragem fria do lugar. Pareciam ter perdido a voz e a vontade de falar. Júlio sentiu um estranho desejo de observá-la enquanto distraída, especialmente quando ela se voltava ao túnel, à espreita do trem, e ele a via pelas costas, ou quase de perfil, uma ponta de nariz, cílios, uma orelha e o minúsculo pingente desgovernado pela lufada repentina que lhe desmanchava violentamente os cabelos, fazendo-os fugir por um lado como se varressem seu rosto ou o escondessem por nada. Vento contínuo, trazendo ao fundo o ruído crescente do comboio mais próximo. Era preciso despedir-se dela. O trem vinha buscá-la, levá-la com os outros passageiros pelas linhas retas, para que ele voltasse sozinho por mais esse dia e mais esse inverno, também entre linhas retas, agora sem remorsos ou angústias baratas. Só um dia como outro, embora ele ainda mordesse o colarinho às vezes, pressentindo situações recorrentes ou alarmes falsos, o que também, tanto como os cabelos que ela inutilmente tentava rearranjar com uma das mãos, o fazia de novo inseguro sob o torvelinho. Sob outra tarde sem sol, também o inverno aos onze anos, outro e sempre o mesmo, ele era o representante da turma no debate anual entre três classes finalistas. Seus adversários, colegiais mais velhos. O anfiteatro pontilhado de rostos humanos, manchas a distância. Na primeira fila, um grupo de meninas de sua idade, estranhas ao seu período de estudos, meninas da noite. Entre elas, essa que o magnetizava sem defesa, a loirinha de cabelos lisos que parecia sorrir-lhe em silêncio. A junta de professores agora anunciando o último bloco, história: querem saber por que o príncipe regente, e os abolicionistas, e os inconfidentes, e os bandeirantes… O grau de dificuldade cresce com o nervosismo dos concorrentes, prevista a eliminação do primeiro que falhasse. Os três disputando, data por data, com rigoroso equilíbrio, os pontos finais. Para piorar, como se fosse ao caso uma disputa paralela, Júlio se sente o mais feio entre eles – até que os inconfidentes fizessem trair a memória da bela representante do vespertino, deixando-o só com o rapaz do último ano, que, como a primeira a ser eliminada, não lhe bastasse a viva inteligência, tinha também a estranha sorte da beleza. Um duelo de ansiosos minutos, por fim encerrado quando o príncipe regente decretou cinco anos antes o erro fatal do mais velho, tornando portanto prescindível a última pergunta, à qual, assim mesmo, Júlio respondeu formalmente, sendo logo interrompido pelos aplausos gerais, vindos de todas as partes do recinto, talvez amplificados por condições da acústica, enfatizados pelo eco, talvez ele é que os estivesse sentindo assim em si mesmo, exageradamente. Seus colegas comemoravam com a canção-hino. O ruído parecia ensurdecedor. Na plateia, as turmas do colegial e a loirinha sorrindo em silêncio, essa a quem ele dedicara secretamente o duelo, antes que também o distraísse o êxtase dissimulado de sua professora de História, que agora o abraçava. Mais tarde, dispersa a multidão, ouviu dela junto ao portão de saída: “Eu sabia, Júlio, que seria você!”. Ele, um dos que voltavam a pé para casa, após despedir-se de uns colegas entusiasmados, saiu contra o vento dessa tarde fria, dilatada pela glória. Estava outra vez sozinho, em tão pouco tempo. O que querem de mim? Que eu saiba as respostas? É só o que preciso fazer? E percebeu, por acaso, que, mais à frente, caminhavam três meninas da primeira fila, a loirinha entre elas, o que o fez apertar o passo para alcançá-las, mesmo sem saber por quê ou o que de fato desejava. Então, como se o pressentisse sob o rumor das árvores agitadas, a loirinha voltou-se por um instante, seguindo com as outras e sem diminuir o passo, viu que era ele, e lhe sorriu com malícia, flagrando-o em um de seus vícios de ansiedade, o de morder o colarinho, como um cavalo que puxa com os dentes parte do cabresto, especialmente contra o vento. A menina o apontou às colegas com um mínimo gesto, ele que não sorria, mas tinha a garganta bloqueada por um calor intenso e característico que normalmente lhe causava algum prazer e precedia as ereções. A brisa assumiu outro poder, e uma lufada repentina violentou os cabelos lisos dela, erguendo-os acima dos ombros, fazendo-os girar e atravessar-lhe os olhos, como se varressem seu rosto ou o escondessem, antes que as meninas a levassem também a correr dele, rindo e desaparecendo após uma próxima esquina. Voltava ao ritmo anterior, um passo tímido à frente do outro. Não podia querer alcançá-las mesmo, afinal o que diria se as alcançasse? Colarinho entre os dentes, repuxando a camisa de uniforme sob a jaqueta, a sensação da garganta outra vez, agora uma angústia involuntária pelo aplauso recente, tendo-o, por tão pouco, afastado da solidão. Que querem de mim? O que devo fazer? O vento crescendo e encerrando mais essa tarde de inverno, como tantas vezes o vivera além das baixas temperaturas, fora do alcance dos que apenas se agasalham, esses que assimilam e digerem as ilusões obrigatórias e os finais felizes e as soluções capengas e as perguntas pela metade, e ainda esperam nas plataformas. Estela entre eles, não sendo um deles, cabelos ainda sob o domínio do vento conduzido pelo túnel, voltando-se apenas para confirmar a presença e a proximidade do outro, mas encontrando o rosto de Júlio mutilado pela memória, agora livrando dos dentes o colarinho amarrotado da jaqueta, com uma estranha expressão contida, como ela ainda não conhecia nele – e em ninguém mais. Um sorriso mal iniciado, tentando romper uma crosta e quebrar uma máscara. Emergindo de uma careta movida por algo semelhante ao nojo e à aversão – mas contradizendo olhos incisivos, determinados a destruir as imagens que os impressionavam e os dilatavam, centrando-se unicamente nela enquanto pensava que não queria mais ser o portador das respostas mal assimiladas, mal desejadas por todos. Não mais um portador de sua própria e negada agonia, que ele tentava ferir com o sarcasmo enquanto se repetia, ao longo da vida: o que querem de mim? que eu saiba as respostas? que querem que eu seja? – e não queria mais ser o representante da história nem o herói dos debates. As meninas fugiram daquela vez; um trem chegava hoje para arrebatar-lhe Estela. Não queria mais ser precoce nem promissor, o que para outros seria uma pequena glória. Então um homem caminha e corre desde a infância, não podendo alcançar o que todo o tempo teria sido seu, para enfim estar frente ao que lhe cabe admitir, especialmente agora, que tinha Estela a um passo de seu rosto e junto à última divisão da plataforma, agora que a beijava sem violência mas com decisiva intenção, ocorrendo-lhe, como homem, que Bruno jamais viveria um momento assim, ele que julgava possuir suas semelhantes e a quem talvez realizasse, por trás de tudo e cegamente, a reprodução, sem que ao menos suspeitasse disso, a paternidade de um novo aventureiro que seguisse buscando e nada encontrando, ainda que procurasse; ou Coelho, que tanto se perdera pelas contradições e códigos distorcidos que lhe proporcionavam a arte e o pensamento, quando no fundo apenas procurava sua mãe; Vanda por um instante, sua grande ilusão e musa de erros, sua grande miopia, ele próprio buscando encontrar-se à frente de si mesmo, o outro que há tanto o esperava, a quem chamava caprichosamente Augusto em seu diário, o Júlio ideal e não realizado, ante o rumor de um trem que abria as portas automáticas para recolher os que apenas esperavam, os mesmos das ilusões das respostas felizes, mas não Estela, não ela, que ele agora retinha não pela força e sim pela cumplicidade de quem, num único momento, podia tudo compreender, vendo no rosto dele o que suspeitava sob as camadas das telas, uma pista, um ponto de última luz, tão tênue que mal se fazia mostrar ante a realidade exata, na nitidez das plataformas e dos vagões bem iluminados, o sinal sonoro que precedia o ruído surdo das portas correndo, o trem que rapidamente seguia, levando tantos em seu interior, por seus trilhos de homens em linha reta, por túneis que nunca terminavam mas os alimentavam de pequenas luzes no transcorrer de sua perspectiva, menos ele, que não pretendia mais ser o príncipe ou o profissional bem-sucedido ou o herói da posteridade. Estela o beijava, aceitava ser beijada, pressionando-o francamente contra seu corpo, quando o trem desapareceu com a última porção de vento. Júlio soltou-se de seu rosto, adivinhando o lampejo final do comboio no vértice do túnel. Adivinhando também que, de alguma forma, fechava um ciclo aos vinte e cinco anos e dedicava a ela, por mero machismo, o desfecho de seus duelos secretos. Sua parcela de ridículo triunfo. O bom menino em nome da classe humana. O fiel e medíocre representante da história e de tudo o que não queria mais representar.

“Fala. Você parece… comovido.”

“Não, Quita… Me desculpe… Estela.”

Os últimos dias de agosto – Guia de leitura

106. Um dado de um jogo de dados – sequência

104. Perto daquela estátua estranha – anterior

Imagem: Robert Henri. Retrato de Doris Trautman (detalhe superior). 1928.

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