Office in a Small City por Edward Hopper

Trogloditas bem-falantes

Quase tudo o que pensamos e sabemos se dá por meio de palavras.
O tempo passa. Essa ideia (não o tempo) necessita de palavras.

John Collier. As servas do faraó. 1883“Ela era o sonho de todo homem: gostosa e burra. Você lembra? Ela ria de qualquer coisinha.”

“Mas ela não era pro seu bico, era demais pra você.”

“Dessas é que eu mais gosto, sabia? Ahahah…”

Estão falando em guerras agora? Será? Sim, um assunto desapareceu sobre o outro, assim são essas mesas movidas a malte de cevada e testosterona.

“Eles saqueavam as cidades, incendiavam tudo, tacavam fogo, marretavam tudo, matavam os homens, estupravam as mulheres…”

Quem? Os visigodos? Os vikings? Os russos em Berlim? Os americanos no Vietnã? No Iraque? Eles quem?

“O que foi? Que que você está pensando?”

“Pensando que… Isso de estuprar as mulheres é como uma recompensa por toda a luta, por ter arriscado a vida… Pensando que até a guerra tem seu lado bom.”

Bem, voltaram a falar de mulheres. De guerra e de mulheres. Uma coisa levou à outra. No fundo, essas duas grandezas nunca foram dissociadas: todas as narrativas da literatura épica prometem mulheres como prêmio ao guerreiro, por bem ou por mal.

“Ah, não! Vocês estão perdendo o senso. E a ética e a…”

“Ah, qual é? Deus fez o homem pra comer as mulheres. Todo mundo sabe disso.”

“Que vocabulário! Muito baixo mesmo. E não só o vocabulário. A ideia toda. Ridículo. Coisa de trogloditas. Mas acho até que eles eram melhores do que isso, os trogloditas. Melhores do que vocês.”

“Você também é assim, porra! Só não quer admitir.”

Outra vez a guerra. Agora a rotina de ataques internos no Afeganistão. Perdas humanas, como sempre. Interesses não resolvidos…

“Olha, pra falar a verdade… Eu não estou nem aí pra esse negócio todo, viu? Vocês têm medo de parecer politicamente incorretos, eu sei. Mas eu não quero nem saber. Fodam-se. Foda-se o Afeganistão e toda essa porra aí.”

“Pelo menos foi sincero.”

Mais cerveja, o tempo passa. O tempo passa sempre. Mais cerveja, mais palavras. Somos todos feitos de palavras, somos seres formados por palavras. Quase tudo o que pensamos e sabemos se dá por meio de palavras. O tempo passa. Essa ideia (não o tempo) necessita de palavras para estar aqui, entre nós. Somos contadores de histórias de outros. Somos histórias contadas por outros. Somos uma concretização sucessiva de tudo o que há para contar sobre todos os que passam, sobre tudo o que passa. E queremos saber tudo, contar tudo. Só o tempo não precisa de palavras. Nem de nós.

“‘Você é mesmo um anjo’, ela me falou.”

Ah, sim. Voltaram a falar delas. Das fêmeas.

“‘Não fala assim, menina’, eu falei. ‘Não me chama de anjo não, que você está me ofendendo, viu? Anjos não têm sexo.’”

“Ahahah…”

“Por que será que tudo sobre sexo me diverte tanto? Se alguém descobrir, por favor, não me conte.”

Agora, sobre a esposa de alguém (!). Sim, é notável a vontade incontida de falar nessas coisas todas, nesse tipo de coisa – com tanto entusiasmo, registre-se.

“… que ela era uma égua na cama. De fogosa e tesuda que era. E o cara teve coragem, e ainda disse a ela: ‘Ele me disse que você é uma égua na cama.’. Assim, já pensou? Na cara. Pra ganhar ou perder. ‘O quê?’, ela falou surpresa e sorrindo. Isso de ela sorrir já tinha enchido ele de esperança. Mas aí ela falou: ‘Mas eu já tenho quem me monte.’.”

“Au! Que porrada…”

“Podia ter ido dormir sem essa.”

“É. Mas o que ele não queria era dormir sem ela. E falou pra ela: ‘Tudo bem, mas quando ele não aguentar mais montar…’. Desse jeito, velho. Só que em vez de um tapa, de uma porrada bem dada, o que ela fez foi dar uma puta gargalhada na cara dele. ‘O Celso? Não aguentar? Ahahah… Esse dia nunca vai chegar.’. Tá bom? Ou quer mais?”

“Au! Pior ainda. Podia ter dormido sem essa também.”

Por que isso tudo? Por que isso tudo é tão necessário, é tão forte?

“Você ainda lembra do seu primeiro beijo?”

“Como que poderia esquecer? Foi com a minha irmã.”

“Sua irmã?!”

“Caralho, velho!”

“É. Foi ela que me ensinou a beijar. Ainda lembro de como ela me olhou daquele jeito ameaçador e falou: ‘Se o pai ou a mãe ficarem sabendo disso, você tá ferrado comigo! Tá ouvindo? Fodido!’.”

“Com a própria irmã, mas que sujeitinho…”

“Nem eu cheguei a um ponto tão baixo.”

“Que isso, caras? O Tribunal da Santa Inquisição?”

“É.”

“Pelo menos, ele foi sincero de novo.”

“Foi só um beijo, caralho. Fodam-se.”

“Tá certo, gente. Ele tem razão. E agora o crime já prescreveu.”

Danilo olha o relógio. O tempo passa. Os crimes prescrevem. É ele quem está adiantado. Pelo menos uns dez minutos. Já tinha pedido um chope, que saboreia sozinho enquanto ouve a conversa dos rapazes da mesa próxima. Não lhe é possível avaliar se esses jovens são melhores ou piores do que ele e seus amigos quando faziam o mesmo, quando se sentavam a mesas como essas, em botecos ou choperias como essas, e escarneciam e se orgulhavam e riam de milhões de coisas, hoje aparentemente sem sentido, sem propósito, tão desnecessárias quanto ridículas. Mas sempre há um propósito, mesmo que ninguém dê por ele. E é, pelo menos, em conjunto ou em partes, a autoafirmação, o exercício do poder, a projeção da conquista – melhor traduzindo: a confusão inevitável, surpreendente, irracional, quase incontrolável, gerada pela necessidade de sexo. Que nasce, germina e se mantém com vida, sustentada pelos hormônios dos predadores, estes em suas espantosas variações, em todos os graus de hostilidade e ternura, entre atos de gentileza e de brutalidade. Porque todos nós somos descendentes dos descendentes dos descendentes… – talvez o fruto de amores recíprocos, talvez a consequência de estupros violentos, que a um e a outro os séculos diluíram até que não restasse o menor vestígio de esperma. E todos os que existem hoje são filhos, próximos ou distantes, de cada momento de invasão, de consumação da posse, do assédio e do assalto, herdeiros genéticos de todas as forças antagônicas que regem e deformam o mundo. Tantos séculos de guerra, e o homem (o ente masculino da espécie) desprendeu-se, não se importa de ficar sozinho, de trocar de mulher, de ter mais de uma mulher, porque, nas longas jornadas que envolviam as missões expansionistas, só o que interessava eram as fêmeas ocasionais, que pudessem ser violentadas e abandonadas. E quantos de nós, desde as inconcebíveis bifurcações da história, das miscigenações à força, portamos em nossos genes a marca de todos esses eventos específicos, atos sexuais entre os conquistadores e as mulheres dominadas, casos que soam insignificantes do ponto de vista mais amplo da história, mas que podem ter sido decisivos para que eu e você estivéssemos aqui hoje. A vida perdurou, de ser em ser, assim como um tigre e uma gaivota são todos os tigres e todas as gaivotas que os formaram. Enquanto o tempo passa, passam a morte e o sofrimento. Melancólico, lembrando mapas. Espaços em que a maldade marca seus pontos. Nem tudo é maldade, mas seu peso é maior. Sua memória é de sombra. Nossa ocupação da Terra nunca aconteceu sem dor.

Danilo, estranhamente, sente que se comove com isso. Com esse palavreado deles. Com a busca infinita de todos eles. De todos nós. Sente pena deles, dessa vulgaridade toda, o que equivale a sentir pena de si mesmo, de seus amigos naquela outra idade, de seus amigos mesmo agora, sabendo sobre a doença grave de Morghini, sobre a separação conflituosa de Souto, sobre a morte trágica de Valdinei. Umas lágrimas apertadas e um soluço engasgado que ninguém ali, ao redor, deve perceber. Não quer que percebam. Mesmo assim, gostaria de contar a todos. Gostaria de tentar se explicar melhor diante de todos. Ou desistir, de vez. E chorar diante de todos.

Por fim, como combinado, o anjo Verne lhe apareceu.

Marcas de gentis predadores – Guia de leitura 

50. Papéis para Verne – sequência

48. Os anjos da lei – anterior

Imagem: John Collier. As servas do faraó. (detalhe superior). 1883.

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