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Um rosto aos 25 anos
Num momento de patético lirismo, lembrou-se do que uma vez havia escrito em seu diário sobre Vanda e as verduras, aquilo de ela aceitar ser mulher, tanto como se dava com as folhas tenras da alface, e esse pensamento pareceu-lhe impróprio, descontando-se o risco de ser mal interpretado, obviamente – imagine, ela sendo comparada com uma alface… Pensou em Estela e com o que poderia associá-la. Seria no mínimo surpreendente que ela se ofendesse ao saber que ele podia compará-la a uma alface americana ou galega, a uma acelga, por exemplo, ou a qualquer outra hortaliça, leguminosa ou composta de flores sésseis, enfim, por mais que se forçasse um padrão de similaridade, como se antes de prová-la pudesse adivinhar-lhe a consistência e o sabor, o que certamente configuraria outra gafe dispensável.
O rosto de um rapaz aos 25 não muda muito no decorrer de um ano. Pela janela, notava a ausência dos crepúsculos de junho, as noites de inverno mais rigoroso. Davam-se ainda as chuvas alternadas, as manhãs de neblina ou de sol ameno, quase alegres, em contraste com a umidade acumulada de certos períodos. Moro numa cidade de muitos recursos, chegou a lembrar. Tais palavras repetidas, absorvidas por acaso de alguma frase feita, um rifão ou tópico aleatório, algum enunciado publicitário ou jornalístico, não mais faziam sentido. Os dias trouxeram Júlios diferentes, além daqueles que cada dia atravessavam, e todos se precipitaram em outro que não seria o último: o desse dia.
Não se completara um ano, que não havia geometrias admiráveis nem círculos perfeitos no decorrer da vida, não se passaram mais do que uns meses desde o anúncio de Dona Norma, os primeiros dias de trabalho, sua parceria com Bruno, o conhecimento do tragicômico vizinho Coelho, suas esperanças com Treze, seu imaturo romance com Vanda e a consequente Noite das Vitaminas, configurando outra sequência de processos diabólicos. Um ano além dos calendários previstos, que para ele passava a significar um século, uma espécie de período em que as horas não se definiam pela posição do sol, mas pela perspectiva de um encontro. Que haviam, todos os pequenos ciclos, formado conjuntos de outros ciclos, desembocando nesse período que se localizava entre a última fase do inverno e ante os primeiros sinais da primavera, entre a vida suspensa e por reciclar-se, entre os dias que atravessava agora, como nunca, os últimos dias de agosto. Pois o presente é tenso – e só o presente o é. O passado não existe, que tudo já transcorreu. O futuro consiste numa projeção por realizar-se, mas não ainda. Só no presente as coisas acontecem, daí seu estado de tensão natural. Eram agora sua única realidade: os últimos dias de agosto. Não a configuração das nuvens. Não a claridade de um sol instável. A perspectiva de um encontro.
Os últimos dias de agosto – Guia de leitura
104. Perto daquela estátua estranha – sequência
102. O mito do animal-mestre – anterior
Imagem: Georges Braque. Composição: frutas, pratos e cartas (detalhe inferior). 1913.
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