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Deixando a fortaleza
A fortaleza dos segredos íntimos e das necessidades sensuais, que a sociedade finge não existir com tanta força.
“Passava da meia-noite. A faculdade estava deserta. Dava pra ver todas as janelas apagadas. Tirei a Ana… o corpo dela do carro. Deixei logo ali, sem precisar ir muito longe. Só tive que arrastar ela por uns metros, não sei quantos, mas não muitos. Fui embora, tremendo de medo, de ansiedade. Arrepiado e quase passando mal. Pensando que fosse desmaiar com mais um ou dois passos. Ainda não acreditando no que tinha acontecido. Voltei ao carro. Olhando para os lados. Conferindo se havia algum outro carro, alguém passando por ali. Mas tive sorte. Porque, graças a Deus, estava tudo deserto, em silêncio. Ninguém. Tudo em paz.”
Agora ele fala por sua própria conta. Liana não pergunta mais. Não está mais prestando atenção. Quieta e ainda sob o efeito do que entende como algo doentio e assustador no que ele vem contando, principalmente pela maneira como ele vem contando. Faltou pouco para que Danilo deixasse escapar uma gargalhada macabra, mas veja-se como são as influências desses tais filmes de horror, não é mesmo? Sim, ela se recompõe. Não faça tanto drama com isso, Liana. Se ele conta assim, é porque não significa mais nada mesmo. Ele gosta de se sentir perdido, parece que sim. Ou de parecer perdido. Ele se sente bem nesse departamento, a praia dele, isso de contar coisas, isso das palavras, melhor dizendo, nesse seu domínio, os domínios de seu reino – aliás, nada encantado. Mas… Não, ainda não é isso. Liana não sabe o que é.
“Aquele era um lugar que eu sempre tentava evitar, mas… Uau! Que foi isso?”
Danilo ergue-se num susto, deixando de apoiar-se no cotovelo.
“Um trovão. Nunca ouviu um trovão?”
“Sim, mas… O dia estava tão claro, tão bonito quando nós chegamos… E virou tão rápido. Será?”
“Pois é. Pensou que fosse um tiro?”
Ele sai da cama, sobe no balcão de alvenaria como em um grande degrau, vai até o vitrozinho alto, disfarçado por uma cortina verde-clara, desses que podem ser abertos, e o abre mesmo, um pouco, para conferir o céu, subitamente escurecido lá fora. Um clarão distante. O trovão demora. Talvez nem fosse do mesmo relâmpago. Seria possível?
“Parece que vem uma chuva feia por aí.”
“Falando nisso…”, Liana deixando a cama em dois movimentos. “Acho que eu quero ir embora também. Parece que vem uma chuva feia por aí”, repetindo-o, irônica.
“E o que é que tem?”, ele solta a cortina, desce, volta ao chão. “Nós estamos protegidos aqui.”
“Protegidos? É. Sei. É que… Eu tenho que fazer umas coisas ainda hoje à noite, acordar amanhã bem cedo e… Acho que foi bom por hoje.”
Um silêncio de estarem quietos um tempo. Liana parece sonolenta. Para ele, isso tem um efeito contrário: sentindo-se no poder de acariciar-lhe o corpo enquanto ela se mantém inerte, vai aos poucos despertando-lhe novamente o desejo. Desta vez, não mais. Ela não está sonolenta. Está absorta. Com a cabeça nos confins da Terra. Não percebe os relâmpagos que clareiam a cortina verde-clara, de tecido fino. Nem ouve quando Danilo pergunta, querendo confirmar, se ela quer mesmo ir embora.
“Ouviu?”
“Ahn?”, Liana já está se vestindo.
Danilo olha os peitinhos dela uma última vez, meio sem vontade, só vício, enquanto a vê fechar habilmente o sutiã, fazendo-o girar sobre si mesma, instalando as alças sobre os ombros num instante, quase num breve golpe. Que prática! Eu me enroscaria nisso aí.
“Eu queria saber…”, ela começa, sem sorrir, sem erguer a cabeça, enquanto acaba de ajustar o sutiã. “Você me contaria essa história outra vez, desde o começo, na ordem certa?”
“O quê? Contar de novo?”
“De maneira simplificada. Só a verdade”, ela insiste, séria, enquanto veste a calcinha.
“Como assim?” Danilo interrompe a própria pergunta, faz a volta na cama para buscar a camisa.
“Sim ou não?”
“Como assim?”
“Você entendeu, claro que sim. Outra coisa: você está pensando em escrever alguma coisa sobre mim?”
“Sobre você?”
“Fala a verdade.”
“Se eu estou pensando em escrever sobre você?”
“É. Você ouviu! Escrever sobre mim. Sobre nós. Uma história, um livro sobre nós, qualquer coisa.”
“Imagine! Escrever um livro sobre nós… E revelar a nossa intimidade, as nossas…?”
“Sério que não está guardando nenhum rascunho, nada? Eu quero saber”, ela insiste séria, enquanto veste a calcinha.
“Sim ou não?”
“O que você quer que eu diga afinal?”, ele pergunta enquanto enfia a camisa por dentro da calça ainda desabotoada. Já se arrepende de ter dito isso. Dissesse não e pronto. Agora é tarde. Acomoda a flacidez de sua genitália na cueca, sob a camisa que desce, prevendo a calça que vai fechando, resignado.
“A verdade. Só. Parece difícil, pelo jeito.” Ela se abaixa e agarra, quase ao mesmo tempo, a blusa e a saia. Separa a saia e a estica, com um gesto rápido, no ar, como se fosse abanar alguma coisa. Começa a subi-la pelas pernas.
“Por que você está pensando nisso agora? Eu dei algum sinal de que…”
“Deu. Muitos. Você não percebe”, agora fechando o zíper, fechando a saia na cintura. “Algumas coisas parecem ser irresistíveis. Você sabe disso. Me lembra a palavra obsessão. Sem exagero, mas… Sim, obsessão. Algo que não se pode evitar. Obsessão, sabe? Isso tudo sobre a Ana Lúcia, você não conseguir se esquecer dela depois de tanto tempo…”
“Ah, espera aí, espera aí”, ele resmunga enquanto se aproxima dela, camisa meio aberta, ainda descalço. “Você é que quis falar sobre isso, sobre ela, lembra?”
“É, eu quis. Quis mesmo. Mas me arrependi”, enfiando a blusa de alças pela cabeça, agora enrolada no pescoço. “Me arrependi. Só isso.”
“Por quê? Não foi bom saber? Eu quis parar com esse assunto várias vezes, e você…”
“Você mentiu. Você está mentindo pra mim”, vestindo a blusa aos poucos, descendo-a pelo corpo, contorcendo os ombros e os braços. “Você mentiu. Não é? E agora?”
“Mas… Mas… Por que menti? Como sabe se eu menti? Eu lhe disse que tenho os recortes guardados comigo, não disse?”
“Não faz diferença isso dos recortes, não quero mais saber disso. Não sei mais. Você disse que tinha lido no jornal. Mas estava com ela”, ajustando a blusa definitivamente. “Disse que a arma era dela: a arma era sua. Será que ela fez mesmo tudo sozinha?”
“Há!”, ele indignado. “Não. Não. Eu não estou ouvindo isso.”
“Você não quer ouvir. É diferente. Ela se matou com um tiro na boca. E também com um tiro no peito. O que aconteceu? Os jornais distorceram tudo?”
“Não, eu não acredito que você…”
“Por que não devo me sentir insegura? Me diga. Por que eu devo acreditar?” Ela agora parece tremer um pouco. Senta-se na cama, estica um braço e alcança o par de sapatos sobre o degrau de alvenaria, umas sandálias altas, negras, poucas tiras finas. Calça as duas quase ao mesmo tempo, então começa a ajustar uma fivelinha mínima na lateral de uma delas. Uma tira estreita atravessa a parte frontal de seus pés e delimita o norte de seus dedos. “Quero ir embora.”
Certo, chega então. É mesmo essa hora em que, satisfeitos com o sexo, até mesmo entediados, quase tristes de uma vez, cada um quer voltar ao seu próprio mundo, de outros interesses.
“Pegou tudo?”, ele, muito cuidadoso e responsável, olhando o quarto, de alto a baixo, antes de sair. Ela não respondeu – já estava se enfiando no carro.
Passando pela guarita da fortaleza, o motel que é como um pequeno castelo bem protegido, a fortaleza dos segredos íntimos e das necessidades sensuais, que a sociedade lá fora finge não existir com tanta força – tanta que nos faz construir tais fortalezas. Que mais? A água, a coca, o chocolate, preservativos não, não usei nenhum daqueles… Tudo certo. Podemos ir. O carro faz a última curva fechada antes de ganhar a estrada sob um céu sempre mais escuro. Um céu escuro em movimento. Nada do que fora até então aquele dia de ar azul, sedoso e desbotado, sem promessas de mudanças. Um cheiro úmido e fresco, de coisa nenhuma, subindo sutil do espaço ao redor. Logo começará uma chuva de pingos grossos, rápidos e violentos. Vamos embora então. Aos nossos mundos.
47. Dois personagens sob a chuva – sequência
45. A cor intensa que nasce e morre com os humanos – anterior
Imagem: Paul Gauguin. Rouen na primavera (detalhe superior). 1884.
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