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O mito do animal-mestre
“Quem pediu pão de queijo?! Não é possível…”
“Bruno me dizia, por exemplo, ‘Vou contar uma coisa que eu nunca contei pra ninguém, nem pra minha mãe.’ ‘Grande coisa. Por que sua mãe deveria saber?’ Eu imaginava: ‘Sou amante de uma mulher casada.’ Não, não. Seria muito pouco, qualquer telenovela mostraria isso com cenas muito melhores. ‘Sou assassino de aluguel.’ Não, absolutamente, de jeito nenhum. Ele era muito indisciplinado para uma profissão dessas.”
Estela mastigava uma rosquinha, enquanto o ouvia, controlando-se para não rir.
“Era algo curioso. Quando menino, a mãe dele costumava preparar um doce de leite em pedaços com o qual ele adorava se deliciar. Mas, por algum desamor a ela, por motivos estranhíssimos que ele nunca soube explicar, muitas vezes atirou fora os doces, sem que ela soubesse, fingindo tê-los comido. Depois, ele ia para o seu quarto e chorava amargamente, abafando os soluços no travesseiro. Era um doloroso sacrifício, renunciar aos doces. E algo mais forte o obrigava a isso. ‘Não existe nada pior do que jogar fora os doces da mãe.’ Essa lembrança o fazia silencioso, um tanto inerte. Como se houvesse ingerido um veneno paralisante. Parecia tornar-se um pouco de pedra.”
“Hoje isso tem cura. Claro que havia um motivo.”
“Sim, sem dúvida. Mas ele não se atrevia a tentar encontrá-lo. Há certas coisas que não queremos mesmo saber.”
“Você quer saber tudo”, Estela e outra de suas simpáticas ironias.
“Não. Não é verdade. Não sei se quero.”
“Você me contaria algo assim, algo semelhante?”, ela atirando-lhe a primeira pedra de um jogo irresistível.
“Como?”
“Você tem alguma história parecida com a do seu amigo?”
“Não. Não me lembro de nada parecido.”
“Tenho a impressão de que você tem sempre algo a dizer.”
“É da senhora o café? Demorou, mas chegou, né? Não? Como, não é?”
“Sempre algo a dizer, é? Deve ser algum outro tipo de doença.”
“Por que seria? Não, deixa. É minha vez de pagar.”
“Vamos pela galeria hoje. Não estamos atrasados.”
“Como quiser, senhor democrata. Você ia me contar alguma coisa. Ou desistiu?”
“Não. Me lembrei de algo. Mas não é pessoal. Você parece capaz de entender.”
“Obrigada. Vou me esforçar muito. Se eu desmaiar, você me dá uns tapas, certo?”
“Desculpe, eu sempre estrago tudo.”
“Estou pronta.”
“Uma vez eu contei isso a alguém. Não se trata de uma confissão. Uma ideia confusa, apenas. Começa com nossos ancestrais pré-históricos.”
“Uau. Deve ser uma história longa.”
“Os caçadores primitivos acreditavam que um deus, uma espécie de animal-mestre, lhes enviava a caça de alguma parte para além do campo visual da existência. Mais tarde, ficou claro que a Terra era esférica, e mapearam-se todos os continentes, as ilhas e os mares.”
“De fato, não é nada pessoal. Continua, não estou rindo.”
“Hoje conhecemos todos esses planos da realidade e não podemos nos voltar a um ponto sequer que a gente já não conheça de alguma forma. Mas eu penso às vezes que… Algo em nós mesmos funciona como esse animal-mestre. Que nós mesmos nos enviamos caça e nos fazemos gratos a esses misteriosos impulsos. E talvez nós dois estejamos caminhando juntos hoje porque…”
“Porque…?”
“Não pode ser tão complicado. Mas…”
“Que foi? Tem vergonha de me dizer?”
“Não, mas… Não é isso. É que… Acho que não sei dizer.”
Estela sorria, observando o rosto dele, mesmo sem interromper o passo. Imagine. Um homem desse tamanho…
Os últimos dias de agosto – Guia de leitura
103. Um rosto aos 25 anos – sequência
101. Eu tenho um diário – anterior
Imagem: Liu Mao Shan. Paisagem.
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