Office in a Small City por Edward Hopper

Mais um papel contra o vento

O mais é o dia de sol. O dia de sol. Acho que já senti isso antes.
Uma sensação incômoda é ver que todos continuam seu afã cotidiano enquanto se está praticamente fora do círculo por algum motivo.

Tina Bluefield. Três curvas e uma barra (detalhe superior)A vantagem desse tipo de serviço são essas sessões e encontros em que se praticam diálogos ricos em filosofias.

No escritório, todos me olhavam com curiosidade. Provavelmente, já sabiam de tudo. Ou quase tudo, que ali nunca se sabia tudo. Pradinho atrapalhava-se, pretendia dizer-me algo, não sabia como. Ficou de pé, ao meu lado, enquanto eu remexia pela última vez a gaveta de minha seção, em busca de algum papel ou objeto pessoal que por acaso houvesse esquecido ali, se bem que, a essa altura, uma inusitada indiferença parecia dominar-me acima de tais e quais ninharias. No fundo, eu tinha certeza de que não havia nada de pessoal, meu, por ali. Ficaria surpreso se encontrasse algo assim em minha própria gaveta, por irônico que isso pareça. Nem me afeiçoava mais ao meu grampeador São Jorge, ao meu fiel extrator Fortaleza, à minha pasta Maravilha. Pensei por um momento, quase com um arrepio, na caixinha de grampos Confiança, como sempre escondida, como bem eu a escondia, no fundo da gaveta.

Pradinho permanecia ali, constrangido. Não olhei para ele uma única vez.

“Eu… Eu lamento que tenha terminado assim”, ele falou, quase sussurrante, de olho no Heitor Expedito. “Não que eu… Eu, pessoalmente… Lamento não poder fazer nada. Se eu pudesse…”

“Você podia.”

“Não, não, você está enganado, não é o que está pensando, procure compreender, tenho mulher e filhos. Eu não pude lhe falar sobre aquilo antes, compreende? Por uma questão de ética profissional, porque nesse caso, especificamente…”

“Ética. Sei.”

“Não, mas espere um pouco, espere um pouco lá. O sigilo, você sabe, também se aplica, de acordo com as instruções e em determinadas circunstâncias…”

Saí sem me despedir de ninguém.

Ruas não muito ruidosas, era ainda o meio da tarde. Tráfego em seu ritmo normal, uma certa quantidade de pessoas em movimento. Só o que parecia estar mudando era o clima, algo menos úmido, entre os dias que nos lembram a prolongada permanência de alguma estação, que se demorava demais enquanto nos distraíamos, enquanto as atravessávamos, uma a uma, sem saber. Vi um papel amassado, arrastando-se com o vento. Papel, matéria morta. Movimenta-se, mas não é vivo. O escritório. Pessoas, matéria viva. A vida é um estado da matéria, alguma ciência afirma isso. Um ônibus. Gente dentro. Matéria morta e matéria viva, o movimento. O ser vive, com impulso bastante para procriar. Ou não precisaria viver, apenas por si. Um cão sem dono, esquálido, talvez doente. Por aí se vê que as gerações, tanto as de cães famintos quanto as de desempregados, como também os insetos e os príncipes, atravessam o tempo com suas crias, bem ou mal amparados, prova é que estão todos sobre o mundo, desde os vira-latas aos artrópodes mais delicados, entre a marcha dos famintos e o egoísmo dos literatos, entre a família do primeiro usurário do Ocidente e o último dos pedintes da Ásia. Ou da América. Ou de qualquer lugar, pois há bem poucas nações no mundo, o resto não tem fronteiras. O mais é o dia de sol. O dia de sol. Acho que já senti isso antes. Uma impressão incômoda é ver que todos continuam seu afã cotidiano enquanto se está praticamente fora do círculo por algum motivo. Eu via as pessoas, os lugares, as esquinas e o tal dia de sol, perguntava-me: e agora? Sinto que estou diante de alguma coisa, mas do quê? Ainda tenho o resto de minha vida, e tudo acaba dependendo do passo seguinte. Onde vou recomeçar? O que me acontecerá conseguir como emprego? Que pessoas… Bem, isso já é outra história. Aliás, eu já desconfiava que as pessoas eram as mesmas por toda parte. Tornava a pensar em Kapila e no universo. Eu estava doente. O universo cercava-me com seus detalhes, invadia-me por todos os lados. Rompia minha frágil couraça de cidadão, meu invólucro de homem, reavivando estranhos sentimentos. Que importa ter perdido o emprego? Que importa qualquer coisa? Aos diabos o emprego! E a curvatura do universo? E as galáxias que ainda não nasceram? E o tempo, que não existe? Filosofar para encontrar a vida, viver enquanto se pensa em tudo, a cura de uma doença ou a manutenção da saúde, há de haver um termo para todo o círculo. E o papel, sendo levado pelo vento, lá vai ele, sem saber do universo, sem saber do que penso, sem saber de nada. Pois veja como são as coisas, meu delicado pedaço de papel. Eu sempre estive em lugares que não eram meus. Mesmo achando uma ou outra coisa engraçada, mesmo vivenciando alguma motivação avulsa, mesmo que me dedicasse sinceramente a algum trabalho, mesmo assim, em minha memória triste, foi só um sonho que tive. Um pesadelo que me aconteceu. E me esmagou, em meio à luz dos dias jovens.

Eu tinha a impressão de que minha vida transcorria do avesso. Seguia para a ruptura crucial de todos os meus caminhos, em direção ao que ninguém queria ser. Pois adivinhava alguma surda evolução em andamento, algo que no fundo se desenvolvesse em segredo, como quando se descobrira que o mundo era redondo, e já não era possível crer nos padres que o ensinavam plano, algo que não se podia definir e não se podia deter. E pensar que este mesmo mísero planeta… Que o universo em expansão… Ora, aos diabos o universo! Eu acabava de perder o emprego.

A seta de Verena – Guia de leitura

 64. Dispensando a musa – sequência

62. Três dos muitos senhores do mundo. Parte 2 – anterior

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Imagem: Tina Bluefield. Três curvas e uma barra (detalhe superior).

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