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Três dos muitos senhores do mundo. Parte 2
Mas não gaguejava e tive orgulho de minha pequena coragem.
Por pouco eu não lhes implorei que acreditassem em mim, que não pretendia ironizá-los, nem me atreveria a tanto, mas, ao contrário: eu sim fora surpreendido por essa afirmação insólita, para eles tão natural. Então eu disse, quase num repente, não sei se provocado por algum orgulho idiota ou por algum ímpeto de coragem não menos ridículo:
“Saibam os senhores que não me orgulho da prosperidade da nação. Não me impressiono com o caótico patriotismo de nosso povo. E considero as pessoas por sua inteligência.”
Fiquei esperando a reação deles.
“Só isso?”, disse o calvo.
De repente, ocorreu-me que eu havia me esquecido da sensibilidade, algo que reputo essencial. Também só agora me vinham a sinceridade e a integridade de caráter. A honestidade. A bondade. Eu estava esquecendo tudo.
“Os estrategistas e os grandes déspotas eram homens inteligentes”, disse ele provocativo, passando levemente um dedo sobre os lábios.
Tive de pensar para responder.
“Não o bastante para serem felizes. Viveram também uma ilusão, a seu modo, que para todos chega a morte. Uma pessoa inteligente sabe fazer de sua vida algo mais belo e melhor, algo mais… Eu diria, algo mais… mais…”
Nada me ocorreu. Todos eles sorriam com o canto dos lábios. Nada do que eu vinha dizendo até então pareceu convincente. Nem eu tinha certeza do que dizia. Ainda tremia um pouco. Mas não gaguejava, e tive orgulho de minha pequena coragem.
“Bem, eu quero dizer, já pensei muito e… Eu concluí que… De qualquer maneira, vale a pena viver.”
Mentira. Eu não estava tão convicto de que a vida valia o esforço de administrá-la. Mas não aceitava ser derrotado assim por eles, por isso é que ainda argumentava, lucidamente ou não.
“Disso, já sabíamos”, disse o mais velho, levemente entediado, como quem diz: está tudo bem, é de gente assim que gostamos.
Eu é que não estava gostando nada, meu ego muito menos, do rumo que a conversa vinha tomando, em grande parte por minha própria culpa, por culpa de meus arrevesados tropeços, alimentando mais constrangimentos, armando-se os diálogos como castelos de cartas, frases com alçapões e passagens secretas, como se, a qualquer momento, pudesse um daqueles homens puxar a cordinha e soltar-me no poço. Por vezes, era-me difícil encontrar a palavra seguinte – eu que, sonhando-me escritor, deveria apresentar-me com outra oratória, mas talvez justamente por isso, pois o escritor não é um orador, nunca foi, nem é preciso que seja.
“Voltando ao assunto…”, cortou o outro, cuja impaciência fazia ver que ele não desejava voltar ao assunto. “Gostaria que você nos contasse sua versão do incidente e, à parte isso, que se posicionasse com relação aos seus interesses na Leôncio & Barradas Advocacia Ltda.: o que espera de nós e até onde podemos contar com você.”
Era o mesmo jogo repetido ao infinito, o jogo dos interesses e do medo, das ambições, ainda que desorientadas, da vaidade pelo poder, dos sobrenomes firmados, da ostentação desnecessária, do conforto baseado na mentira, não importando que o tempo lhes prometa um limite, pois, no tabuleiro deles, quem morre com mais brinquedos, ganha.
“Bem…?”, ouvi o mais jovem deles, como apressando minha resposta, que de fato já se demorava mais do que o normal.
Acredite quem assim o desejar, pois nesse espaço (sei que é tempo) de apenas magros segundos, a minha pestilenta imaginação criou as situações futuras em que estariam enredados esses meus três patrões, mas atenção, que nada tenho de dons premonitórios, muito menos cultivo talentos paranormais, já sendo-me bastante difícil cultivar talentos normais. O que vi, menos por meio de minha intuição que de minha lógica, foram três imagens paralelas nas quais aqueles homens agonizavam, às vésperas da morte. Eles viviam hoje, ao menos dois deles, considerando-se sua aparência, a tão confortadora quanto preocupante faixa de seus cinquenta anos. Sabendo-se que nós, humanos, não sendo elefantes africanos ou tartarugas terrestres ou araras amazônicas, vivemos apenas algumas décadas antes da decrepitude, era bastante natural e esperado que, dentro de vinte ou trinta anos, o que também não é muito, todos ali estivessem encurralados. Não que eu me sentisse melhor do que eles, pois certamente também amargaria a minha vez, caso ultrapassasse os trinta e os quarenta, e assim se vai, por diante e ainda.
O calvo, à esquerda, o mais velho entre eles, gemia quase surdamente, entre grandes espaços de silêncio, ligado a aparelhos que mantinham seu organismo em funcionamento, entre tubos que lhe atravessavam as narinas e a traqueia, sondas para nutrição, mais a frequência do soro instilado em seu sangue, hoje viajando dentro de um corpo amolecido e sem forças, quem diria ter sido o temido carrasco que amedrontava os subordinados, num tempo em que ainda era possível ter optado por fazer-se um homem melhor.
O outro, o de rosto bonito como o de algum artista das telas, cuja juventude teria sido rica em sensualidade e assédios, agora sedado quase todo o tempo, apenas prolongando um dia e mais outro, que, entre esse dia e mais outro, aguardava o dia último, ele esquecido pelas mulheres que uma vez o desejaram, que também seriam velhas doentes agora, caso ainda existissem, ignorado por aqueles a quem no passado servira, hoje talvez mortos e mudos, já sem préstimo algum as suas habilidades administrativas e os seus mentirosos discursos, esse mesmo homem que era o arrivista por natureza e que só falava em crescer e crescer e crescer, essa massa inchada como fermentada pelo revezar-se das estações, pálida ou, pior, com a cor antecipada dos cadáveres, quem arriscaria dizer o mesmo jovem atraente que perdera para sempre a oportunidade de mostrar ao mundo que o erotismo e a sensualidade poderiam ser, ultrapassando-se as viciosas limitações da vaidade masculina, formas, por si só gratificantes, da materialização do amor.
O doutor Aguiar tivera mais sorte. Fulminado por um ataque cardíaco que a ninguém dera chances de socorro, uma invisível seta a atravessar-lhe o peito, sendo, desde então, tarde demais para a ambulância da clínica, conhecida pelo mais eficiente esquema de resgate, e para os cuidados de seu renomado médico pessoal. Esse que era o paciente (aqui, noutro sentido) perseguidor de seus inferiores, que sabia, por experiência de vida, aguardar o momento mais apropriado para seus ataques, dando o tempo certo a que seu alvo caísse em algum de seus embustes, hoje vítima de uma armadilha repentina que não lhe permitia tempo de resposta e contra a qual se esfacelavam todas as suas cuidadosas estratégias. Quem quisesse tê-lo visto antes, que o visse agora, mais um feitor prostrado, num instante.
Alguma profunda necessidade de salvação ou de vingança me fez ver essas coisas todas, embora não vislumbrasse mais do que a realidade dos que chegam a tais terríveis fases, pois, como é sabido por todos, poucos estão livres desse destino, salvo os que forem assassinados ou, bem, isso pouco nos importa agora. De qualquer forma, a impressão sufocante que passavam essas ideias devia estar alterando minha fisionomia, pois percebi que aqueles homens me examinavam com especial atenção, os três um pouco curvados para a frente, quase como se assistissem, em minha testa, às imagens que eu, angustiado, engendrava por dentro. Mas não era o engasgo desse meu súbito silêncio o que me traía. Era, sim, a sensação do tempo a todo instante, o tempo todo o tempo, o tempo que iria nos destruir a todos um dia. Não é o medo. É o tempo o que nos deixa sem fala.
O doutor Aguiar, por exemplo, não dispunha de tanto poder assim. O que ele fazia, descontando-se as obrigações de toda profissão, era trabalhar por um esquema esmagador e quase invulnerável que obsessivamente defendia, quando ainda poderia ter escolhido representar, com sua inteligência e capacidade administrativa, um propósito menos desumano. Como dito antes, não me sinto melhor do que eles, penso o mesmo de todos nós, afinal os humanos todos correm os mesmos riscos. Só o fato é que hoje, graças aos avanços da medicina, as pessoas agonizam por mais tempo. No fundo, eu não gostaria que acontecesse assim, nem a eles nem a outros. Mas coisas dessas não cabem à minha vontade e sim à dos deuses do tempo. E o tal tempo não havia passado ainda. Aquilo era o presente. Ali estava o perigo.
“Não se esqueça”, disse o doutor Aguiar, o que menos sorria ali, abrindo um pouco mais os olhos. “Isso, o que aconteceu, deixou você numa situação muito delicada.”
Eu já ia dizer, por hábito, um sim-senhor. Mas calei-me. Não tinha mais a menor vontade de respeitá-los.
“Agora, prossiga.”
EEntão, eu fiz a última coisa que poderia ter feito numa hora daquelas, frente a tais rapinantes: disse toda a verdade. Acrescentei opiniões críticas sobre o escritório, repassando sua relação com o que havia de mais baixo e desonesto em nosso país, em favor de arrivistas inescrupulosos. Que, por causa de tantos como eles, continuávamos vivendo em um mundo perigoso e sem futuro, com seres humanos capazes de matar em nome de interesses mesquinhos, pessoais e efêmeros, pois, quando tudo emudecer, as palavras todas, importantes ou não, já terão sido ditas, e ninguém haverá de se lembrar quais foram, nem precisarão saber, não haverá ninguém mais, e que o silêncio que homens como eles feriam, com seus ruídos inúteis, era o mesmo que antes de tudo imperava, não havendo hoje, para mim, maior castigo que saber disso e, ao mesmo tempo, compreender tudo o que diziam, tudo o que se engendrava por trás do que educadamente diziam, que eu haveria de escrever, noite após noite, haveria de contar tudo como pudesse, com o que tivesse em mãos, noite após noite, como já disse, até um dia ser vencido também – isso tudo usando um palavreado claro, que não este a lembrar-me, incisivo e, o pior: inteligente.
A seta de Verena – Guia de leitura
63. Mais um papel contra o vento – sequência
61. Três dos muitos senhores do mundo. Parte 1 – anterior
Imagem: Willem de Kooning. Rua Gansevoort. 1949.
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