Office in a Small City por Edward Hopper

Explicação do surgimento da mancha sinistra

Só uma situação de escandalosa obscenidade poderia salvar uma cena como essa, entre dois personagens mal conhecidos, declinando à caricatura.

Anya Gallaccio. Gelo negro. 2002Quem lhe indicara o médico: uma colega de trabalho, a Maria das Graças. Maria das Graças: casada conforme as aparências, mãe de dois adolescentes, no fundo ansiosa pela oportuna aventura que a conduzisse a um orgasmo de verdade (Orgasmo). Enquanto isso, vivia dissimulando suas virtudes entre estranhos sorrisos e olhares ocasionais, o que não a ajudava muito, pois era espalhafatosa, sorridente, exagerada, e ninguém se interessava por ela – nem mesmo um dos supervisores mais ativos do departamento, que normalmente arrastava consigo uma ou outra colega imbecil à sua coleção de motéis periféricos. Conhecendo mais tarde o renomado oftalmo, Júlio atinou com a expressão dela ao mencioná-lo, olhos de virgem em estado de graça, podia vê-la chegando a uma consulta com esse hó-timo especialista.

“Bom dia, dona Graça. Como tem passado?”

“Bom dia, doutor. E não me trate por dona, eu fico triste com você.”

“Me desculpe, só a força do hábito.”

“Entre nós dois não são necessárias tantas formalidades, não é mesmo?”

“Claro, claro. E mesmo que a trate por você, saiba a senhora que lhe dispenso o mais profundo respeito”, avisou o médico, que não era bobo, ou não seria médico.

“Outra vez, oh, que distraído… Sou Graça pra você. Você, ouviu?”

“Claro… Graça. Sente-se, por favor. Que é que houve desta vez?”

“Meus olhos, ah, têm ardido barbaramente. Fico pensando em você à noite, quando eles ardem, só você poderia me ajudar…”

“Hum… Talvez um colírio, nada tão sério. Deixe-me ver.”

Só uma situação de escandalosa obscenidade poderia salvar uma cena como essa, entre dois personagens mal conhecidos, declinando à caricatura. Júlio fechou a revista que fingia estar lendo enquanto imaginava obscenidades e correu os olhos pela sala de espera, avaliando tudo o que via pela metade, obstruído pela vasta mancha negra que o acompanhava há dias. Folheou outra revista, percorrendo títulos com dificuldade. O que há para ler, com olhos assim?

A AIDS é uma das experiências mais interessantes do nosso século. O indivíduo passa a questionar os valores da vida por uma nova óptica, a do doente terminal, vale ressaltar, inclusive no âmbito da sociedade como um todo. Num momento em que a civilização avança vertiginosamente, sob o aspecto tecnológico, e a mídia do capitalismo propaga uma profusão de valores e símbolos de ascensão social a que o indivíduo se apegue, a AIDS vem, em contrapartida, denunciar a condição equívoca na qual repousam os superpoderes da ciência, agora impotente e perplexa. […] Mas, se algo se aproveita disso tudo, é, por conseguinte, o questionamento, diga-se de passagem, saudável, para o qual se voltam tanto os portadores do vírus quanto os ainda não infectados, talvez levando a mesma sociedade futura de volta aos valores mais simples e essenciais da vida que não a atividade sexual promíscua que, entre outros fatores, contribui decisivamente para a expansão crescente desse mal.

O artigo não era assinado por um pesquisador, mas pelo representante de uma conhecida entidade assistencial ligada a grupos religiosos tão impotentes e perplexos quanto a ciência. Júlio era incapaz de sensibilizar-se com uma trapalhada daquelas. Os periódicos médicos publicavam-nas assim mesmo, ignorando inclusive os pontos em que o texto se aproximava de uma velada comicidade, sugerindo quase grosseiramente uma distraída autoparódia. Para Júlio, o texto era outro, contaminado por seu ceticismo virulento, incluindo a verdadeira sombra do articulista.

A AIDS é uma das experiências (que graças a Deus eu não tive) mais interessantes do nosso século. O indivíduo (desde que não seja eu) passa a questionar os valores da vida por uma nova óptica, a do doente terminal, vale ressaltar, inclusive no âmbito da sociedade como um todo. Num momento em que a civilização avança vertiginosamente, sob o aspecto tecnológico, e a mídia do capitalismo propaga uma profusão de valores e símbolos de ascensão social a que o indivíduo (eu, por exemplo) se apegue, a AIDS vem, em contrapartida, denunciar a condição equívoca na qual repousam os superpoderes da ciência, agora impotente e perplexa. […] Mas, se algo se aproveita disso tudo, é, por conseguinte, o questionamento, diga-se de passagem, saudável (pois não sendo comigo…), para o qual se voltam tanto os portadores do vírus quanto os ainda não infectados (esse o meu caso, graças a Deus), talvez levando a mesma sociedade futura de volta aos valores mais simples e essenciais da vida que não a atividade sexual promíscua (da qual, não fosse eu casado e religioso, apreciaria imenso participar, mas infelizmente não me é possível) que, entre outros fatores, contribui decisivamente para a expansão crescente desse mal.

Mais um canalha, pensou. Como todos nós. E tantos que assinam artigos e seções, e dizem isto e aquilo, enquanto tudo sempre ocorre e tudo sempre passa, enquanto também o chamam pelo nome.

O médico bateu de leve em seu ombro: nada muito sério, embora necessitasse de cuidados.

“É, senhor Júlio. Parece que o senhor sofreu uma hemorragia bem junto à mácula. A mancha que o senhor vê é um coágulo de sangue.”

Senhor Júlio. Por que o chamavam assim, algumas vezes, se tinha apenas vinte e cinco anos? Como se lhe desse alguma importância, o cretino. São todos uns canastrões, que procuram fingir-se finos e chamam a quaisquer jovens senhor e senhora como se os pudessem trazer depressa à maturidade e aos seus valores, sem dúvida os mais certos, como se existisse mesmo um certo. Pedia que não se assustasse, como se lhe houvesse mostrado um arranhão no joelho: Júlio estava apenas perdendo a metade da visão.

“É uma região muito sensível do órgão visual (“Não diga!”) e requer especial atenção. Por enquanto, é bom evitar pancadas na cabeça e situações afins.”

“Grande conselho, não acha? Como se eu andasse batendo com a cabeça por aí, o que só é verdade metaforicamente. Por enquanto, ele disse.”

“Acho que ele estava se referindo ao futebol…”, Estela em melhor humor.

“Só me estranhou…”, Júlio segurando o cigarro aceso à altura do rosto, detendo o gesto e estreitando os olhos, como se de repente lhe ocorresse algo que houvesse antes menosprezado.

“O quê?”

“Quando ele quis saber se algo… Algo que me houvesse abalado muito, por exemplo, a morte de um parente ou… Sei lá”, baixando o cigarro, outra vez liberando-se os movimentos.

“Não se lembra?”

“Não. Ele me disse, por fim, que talvez fosse um distúrbio de ordem emocional, e isso me assustou um pouco, na época. Cheguei a ter medo de mim mesmo. Que dramalhão.”

“É possível”, ela quase o interrompendo. “Há muitos distúrbios orgânicos derivados de fatores emocionais, claro que você sabe disso.”

“Sim, esse é o problema.”

“E nem sempre podem ser revertidos, mesmo que se mudem os hábitos.”

“Não é fácil. Teríamos de ser outros.”

“Não outros. Os mesmos”, ela mais atenta e sutilmente irritada. “Os mesmos. Melhorados. Difícil entender?”

“Pelo menos, não é só uma questão de temperamento, é isso o que você quer dizer?”

“Não, não sei se você está me acompanhando. Mas tudo bem. E por falar em temperamento, qual o seu signo?”

“Que diferença faz?”

“Não faz. Qual é?”

“Bom, eu tenho todos os defeitos de um leonino.”

“Mesmo? Também sou de Leão, sabia?”

“É uma grande vantagem sermos de Leão.”

“Também não chega a ser uma desvantagem, se não é uma questão de temperamento.”

“Estela, eu me rendo. Então teríamos de ser outros, digo…”

“Sim, se quisermos vencer os coágulos. Não acha?”

Júlio diminuiu o passo, mais uma vez acossado pela argúcia dela.

“Tudo bem, então. Obrigado por me lembrar. Esse coágulo é hoje uma mancha do tamanho do mundo. É o que me impede de ver. Com o direito. Você tem razão.”

“Faz diferença ver sempre o lado ruim de tudo, não acha? E parece tão simples entender isso…”

“Você às vezes me lembra que… Quero dizer, me lembro às vezes de que não me agrada ser o pessimista, o negativo, o que nunca aprecia coisa alguma. Não faço de propósito. Não admiro os pessimistas. Chego a ter vergonha de ser triste.”

Estela sorria. Ficou assim, sorrindo, e parou para vê-lo de frente. Como se dissesse: “Imagine, um homem desse tamanho…” Mas ficou assim, sorrindo. Ficou assim.

Os últimos dias de agosto

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Imagem: Anya Gallaccio. Gelo negro. 2002.

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