Office in a Small City por Edward Hopper

Três dos muitos senhores do mundo. Parte 1

Era quase inteiramente calvo, ombros contraídos, e mais velho que seus comparsas.
Pareceu-me vagamente conhecido, mas sua fisionomia tremulava em minha memória como aquelas palavras que nos escapam por muito tempo e ainda se mostram cinzentas, mesmo estando próximas à claridade da consciência.

Willem de Kooning. Sem título. 1951Eu estava diante de uma mesa de grande porte, atrás da qual o doutor Aguiar erguia-se entre dois outros, os superintendentes. Um deles era o doutor Barradas, eu não sabia qual, talvez o da direita – mas por que o seria? Um homem bonito e bem cuidado, como só os filhos dos ricos podem ser, cabelos curtos e grisalhos, penteados à maneira dos antigos galãs do cinema, o que provavelmente até os dias de hoje lhe rendesse simpatias e casos com mulheres mais jovens. Do outro, nunca tive notícia: quase inteiramente calvo, ombros contraídos, mais velho que seus comparsas. Pareceu-me vagamente conhecido, mas sua fisionomia tremulava em minha memória, como aquelas palavras que nos escapam por muito tempo e ainda se mostram cinzentas, mesmo estando próximas à claridade da consciência. Isso me causou uma impressão desagradável e incômoda, embora eu não atinasse ainda com a verdadeira situação passada que o teria tido como protagonista. Não posso negar que estava trêmulo, mesmo prevendo que o pior, minha dispensa definitiva, estava consolidado desde o momento em que decidira resistir e não ceder sob nenhum ponto de vista. Um a um, eles me estenderam, ou melhor, atiraram a mão em minha direção, de maneira habitual, rápida e desinteressada, significando esse gesto coisa nenhuma. Ali estava eu, fatalmente. Trêmulo, como já disse. Evoquei o espírito de Giordano Bruno sob minha pele, ou mesmo do capitão frente à corte dos cadáveres, esforçando-me com uma dose extra de coragem, quem sabe assim inspirando-lhes também alguma retração e originando algo semelhante a um duelo, uma medição de forças. Ai de mim: esses neoinquisidores pareciam sem medo algum.

“Que surpresa encontrá-lo aqui”, disse um deles, justamente o que me parecia conhecido, com isso reforçando aquela péssima impressão que surdamente me sufocava.

“Sim, certamente”, disse eu da melhor maneira.

Não pareciam austeros nem agressivos, ao contrário. Começaram por pequenos sorrisos, cumprimentaram-me com ênfase amigável e discreta, a própria encarnação da cordialidade. Tudo isso, claro, como sempre tem sido entre os ricos e os poderosos. (Costuma-se dizer ricos e poderosos, mas não como referência a dois tipos distintos, mesmo sendo muito raro que não sejam os mesmos ou que não caibam em uma só palavra, pois não se conhece um rico que não detenha sua parcela de poder nem nunca se viu um poderoso circulando entre os pobres.) Tudo, aliás, como abafando um silêncio traiçoeiro por trás de cada olhar calculado, por trás daqueles gestos cautelosos e das boas maneiras que, de alguma forma, já prenunciam as desgraças.

“Então você é o famoso…?”, disse o outro.

“Não sou famoso”, respondi quase num repente.

“Mas já chamaram você de ovelha negra, funcionário problema e…”, procurando a ajuda de seu colega. “O que mais?”

“Como?”, disse eu.

“É o que dizem.”

“Quem diz?”

“Seus amigos.”

“Amigos…”

“Uma calúnia”, o outro entrou na conversa, erguendo os braços à maneira dos candidatos nos comícios ou como disposto a interromper o trânsito. “Tenho certeza de que isso não tem fundamento.”

Esse era o mais velho e calvo, eu não poderia dizer de orelhas pontudas, seria no caso uma imagem sub-reptícia em minha memória, aludindo a um duende, o que o faria óbvio demais. Onde seriam seus olhos, viam-se dois orifícios mínimos, dois tracinhos negros e estreitos, de forma que não se podia entrever sua alma. Na verdade, ele voltava à conversa alternando olhares pela janela: parecia que seu desejo mesmo era perder-se longamente no horizonte, sabe-se lá o que podia haver de tão importante na cansativa multiplicidade de edifícios que compunham a cidade, mas creio que eles sempre associam esses cartões-postais ao dinheiro, ao sucesso, ao poder, seu limite não lhes deixa mais. Ele emitia, entre umas palavras e outras, quando retomava o discurso, um estranho sorriso como eu nunca vira antes, como se, no instante seguinte, fosse abrir uma careta imprevista ou, mais assustadoramente, começar a gritar ou a chorar, quem sabe, um tipo assim pode pouco mais que conhecer-se ou ter domínio sobre si mesmo, basta-lhe seguir extraindo vantagens sobre os mais desafortunados, assim conservando-se no poder, do resto cuida o tempo, a memória, o giro do velho planeta.

“Mas dizem que outro dia você…”

“Antes de prosseguirmos, senhores…”, interrompeu o doutor Aguiar, gesto de mãos à altura dos ombros, como um jogador que acaba de cometer uma falta e quer mostrar a todos que é inocente. Voltou-se para mim. “Você é um rapaz inteligente. Aprende rápido o serviço. Tem tudo para subir aqui dentro. Espero que considere o motivo deste nosso encontro. Outro funcionário, em seu lugar, seria excluído do quadro sem mais preâmbulos. Portanto, não se esqueça disso. Você está tendo sua chance.”

“Sim senhor”, gaguejei.

“Soube que você também é poeta”, tornou o mais velho. “Sei como você se sente. Sei como são os sonhadores. Sei, tanto como você também sabe, que todo jovem é um poeta, não é mesmo?”

Dessa vez, eu me sentia forçado a dar-lhe alguma resposta. Ele estava invadindo o meu mundo, não bastasse ser o senhor do seu. Ao menos, deixasse aos poetas e aos homens verdadeiramente inteligentes a proeza de viverem o que não lograva ele alcançar. Mas, com um tipo assim, não bastam palavras, como alguém pede um favor. Eles se sentem superiores a todos, mesmo que possamos provar o contrário, mostrando-lhes versos de Fernando Pessoa ou de Paul Celan. Era preciso revidar, sem dúvida, repudiá-lo com urgência, tornando-o ao seu devido lugar. Vasculhei, com a pressa dos ameaçados, meu estoque de frases brilhantes, momentos de minha literatura acumulada, entre expressões enfáticas e concisões avassaladoras, até por fim responder:

“Pois é… Então…”

Pensei em alguns poetas que eu tanto admirava, cujas obras atingiram sua melhor fase na maturidade, inclusive um alemão que, tendo morrido com mais de 80 anos, deixara incompleto um poema iniciado na véspera. Também um belga, em idade semelhante. Um italiano. Um chinês. Um brasileiro. Pensei também nos jovens de minha idade, muitos deles incapazes de reconhecer a beleza. Não disse nada.

“Eu também, quando jovem, escrevia versos”, continuou o homem, certamente outro carnívoro sem escrúpulos, e por que os teria? “Estão guardados até hoje com a minha mãe. Ela gosta demais deles.”

Fiquei ouvindo.

“Lembro até hoje do que escrevi para minha irmã no aniversário dela. Era um soneto.”

Ele não me poupava de sua arte e fazia cara de quem tentava recordar alguma coisa. Não me importava nada que ele redigisse o que bem lhe aprouvesse, desde que eu não precisasse fazer parte de seu público. Tinha esperanças de que ele não se lembrasse do soneto. Que não se lembrasse, que não…

“Mas não me lembro mais dele. Qualquer dia, vou juntar todos e publicar um livro.”

Oh, sim! Faça isso por nós.

“Bem, deixando um pouco a poesia”, fez o outro, com um pigarro, “eu gostaria de ouvir a sua opinião, a sua opinião sincera, sobre o nosso atual sistema de governo e, digamos… a política econômica, você sabe, as medidas mais recentes, aliás, muito necessárias.”

Em espaços de tempo tão ridículos quanto átomos ou componentes de átomos ou qualquer coisa assim minúscula, fiquei imaginando a procedência, palavra longa até demais para contar de tais lapsos, esta ficou melhor, a origem deles, de outros homens como eles, pois eram apenas indivíduos, não mais do que cópias uns dos outros, falando diferentes línguas e dividindo as condições climáticas mais variáveis, de onde vinham e o que perseguiam afinal, agindo sempre como se não fossem morrer nunca e como se o tempo não corresse por baixo de suas salas como um rio venenoso e letal. Ocorria-me obscuramente que todos os países do mundo eram habitados por essa espécie de predadores, que, por trás de tudo, as coisas sempre funcionavam assim, e só não víamos porque não era possível ver a todo momento, e também porque nossa vida seria muito triste se soubéssemos. Era praticamente impossível conseguir um emprego sem ser indicado, sem uma carta de apresentação, por precária que fosse, sem que alguém se dispusesse a trocar favores de qualquer gênero, pois disso e de outras mesquinhas artimanhas, legiões de homens como eles se aproveitavam. Também, numa centelha de enfraquecida esperança, desejei que o tempo avançasse mais rapidamente, que se acelerasse, tornando décadas em anos, anos em dias e minutos, não para que eu saísse logo dali, mas para que a natureza mostrasse aos homens que não valia a pena insistir naquilo. Apesar de tudo, apesar de tanto, apesar de tão pouco, era a minha vez de falar.

“Eu… Quanto ao… Talvez eu não esteja muito bem informado, certamente não tanto quanto os senhores.”

“Claro que não. Bem, apenas uma opinião, eu diria.”

O silêncio de meus olhos estatelados, sem que eu me desse conta, parecia incomodá-lo.

“Bem, diga algo,” tornou ele, não tão irritado quanto eu previra.

“Até admiro”, respondi, mais ou menos me desviando do ponto, “que homens tão ocupados como os senhores se disponham a ouvir-me assim, tendo de interromper as suas ocupações, o seu trabalho…”

Outra vez o doutor Aguiar foi quem me cortou.

“Cuidado com essas fingidas ironias. Você sabe perfeitamente bem que estes senhores são homens muito ricos e não precisam trabalhar.”

A seta de Verena – Guia de leitura

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Sobre o livro

 Imagem: Willem de Kooning. Sem título. 1951.

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