Office in a Small City por Edward Hopper

Às voltas pelas ruas do centro: Ana Lúcia jaz em movimento

Tenta ao máximo não interrompê-lo, quer saber tudo.
Enquanto fala sozinho, ele se perde produtivamente.

Odilon Redon. Olhos fechados. 1890“Com o corpo? Claro. Conto num instante.”

“Sei. Num instante.”

“Fui até perto da faculdade, onde eu sabia que tinha uma área verde, que era usada pelo Departamento de Biologia e Meio Ambiente, e onde os casais iam, à noite, namorar escondido. Era um lugar bonito, sabe? Tudo pensado para a preservação, o verde, a vida, essas coisas de sempre. Mas, no escuro, era tão feio como qualquer outro lugar.”

“Sei.”

“Mas, antes de chegar lá, ainda no centro da cidade, eu passei em frente a uma vitrine de uma loja de presentes, utensílios domésticos e outras tranqueiras importantes para a vida prática, e por acaso vi um jogo de facas bem à mostra, num grande estojo de fundo branco. No tempo em que estive parado, em que eu fiquei parado ali, esperando abrir o semáforo, fiquei olhando aquelas facas grandes, médias e pequenas, dispostas numa gradação harmoniosa, marca de qualidade, a um preço nada promocional, sinal de que deviam ser mesmo excelentes, confiáveis. Porque é assim que o mercado funciona, não é? Se um produto custa caro, é porque…”

“Sei, sei. E aí?”

“Um cara buzinou. E eu tive que ir embora. Mas dei a volta ao quarteirão, queria ver de novo aquele estojo atraente, as facas inoxidáveis, confiáveis. Enquanto fazia a volta, não pude evitar alguns estranhos pensamentos, movidos por minha confusão, acho, ou por minha racionalidade instintiva, tentando encontrar uma saída. Além disso… Eu disse confiáveis? Ou inoxidáveis?”

“As duas coisas. Racionalidade instintiva? Bom, deixa pra lá. Continua.”

“Pensei que não teria problema se eu descesse do carro e fosse ver as tais facas. Poderia deixar a Ana dormindo ali, ninguém iria perceber. Estava tudo tão calmo, tudo tão normal no trânsito, normal em tudo ali. Mas não tinha vagas na rua, eu teria que entrar em algum estacionamento, e aí sim: as coisas poderiam se complicar.”

“Você foi embora. Sua racionalidade venceu. E você foi embora. Me diz que foi isso. Sua inteligência venceu.”

“Eu dei a volta. Ainda estava pensando. Minha cabeça não se firmava numa ideia só. Eu não sabia ao certo o que estava passando pelos meus pensamentos, pela minha intuição, pela minha memória…”

Liana quase diz tolamente: “Uau! Mas isso é tudo o que nós somos.”. Não tem humor para tanto. Tenta, ao máximo, não interromper, quer saber tudo, está muito perto de saber tudo – enquanto fala sozinho, ele se perde produtivamente.

“Eu estava me perdendo, entende? Sentia que estava me perdendo…” As duas mãos nas laterais da cabeça, dedos tocando as têmporas, girando e pressionando um único ponto, como se tentassem fazer um furo ali. “Não conseguia fechar um pensamento lógico, não conseguia distinguir um próximo gesto real de um próximo gesto imaginário, não sei se estou conseguindo explicar, não conseguia entender que rumo estavam tomando as coisas todas, a começar pelas minhas ideias, que eu… Um século antes, e poderiam dizer que eu estava sendo possuído por um demônio.”

“Não, não. Deixa o cinema. Volta. Continua.”

“Certo. Onde eu estava?”

“No centro.” “No centro. Isso. E falando em cinema, também ali perto, eu vi um outdoor com o cartaz de um filme: um homem, bem no centro da imagem, segurando uma faca, um punhal, não sei, e isso me chamou a atenção. Ele olhava pra mim – para o espectador, é claro. O rosto quase todo em sombra, mal identifiquei aquele ator na primeira, li o nome logo acima da cabeça dele. Seria apenas coincidência essas imagens de facas se sucedendo em meu caminho, em tão pouco tempo? Ou eu é que passava a dar atenção a elas, apenas?”

“Ahn… Não sei. O que você acha?”

“Eu lembrava, sem querer, de ter pensado uma coisa, uma coisa meio infantil, meio excitante, mas não disse nada porque tive vergonha, de quando alisava as costas dela com um dedo, seguindo a coluna vertebral, descendo até o traseirinho, subindo e voltando devagar, quando firmei o dedo num lado da bundinha dela, como se desenhasse ali, e imaginei que dizia: ‘Um dia vou fazer uma marca em você, Ana Lúcia. Uma marquinha de ponta de faca, você vai ver. Minha inicial na sua pele. E você vai ser minha pra sempre.’. Pode rir.” Ele mesmo começa a rir. “Ahahah… Estou sendo sincero, fiquei com vergonha de dizer. Mas com vontade de fazer. Que coisa, não? Seria engraçado…”

Liana não pisca. Excitante? Engraçado? Marcar alguém com uma faca? Seus lábios não se fecham.

“Imagine como eu estava distraído pra dirigir, lembrando dessas coisas, assim. Imagine a curva da letra D. Imagine se ela reagisse… Ahahah…” Estende a garrafa a Liana. “Água?”

Liana abre a boca e fecha-a. Não, não quer – com um gesto breve. Prefere resistir e se calar. Deixá-lo solto para discorrer em sua espiral, em seu labirinto, que se abre cada vez mais, em meio à sua confissão assimétrica e anacrônica, esquina após outra.

“Na esquina, tomei uma decisão. Entraria num estacionamento, coisa de um minuto. Tinha uns por ali, com aqueles galpões do fundo bem escuros, eles apagam algumas lâmpadas pra economizar, você sabe. Cheguei a subir a rampa, o rapaz da guarita me olhou sem interesse, ali era mesmo muito iluminado, na entrada, um spot bem forte, isso tudo me intimidou. O rapaz estava atrás de um vidro meio esverdeado, mas… Mesmo assim, fiquei preocupado. A luz era muito forte. Ele poderia estranhar alguma coisa, sei lá. Tomei outra decisão. Dei ré, voltei à rua, fiz dois carros esperarem, atrapalhei um pouco o fluxo, eu sei, não tinha como evitar, não tive culpa, e voltei a girar ali por perto. Ainda pensando nas facas. Não é engraçado?”

Marcas de gentis predadores – Guia de leitura

41. De como perdemos Val – sequência

39. Chora, menino – anterior

Imagem: Odilon Redon. Olhos fechados. 1890.

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Comentários

2 respostas para “Às voltas pelas ruas do centro: Ana Lúcia jaz em movimento”

  1. Avatar de Luiz Silva

    Gostei! eu li, mas, fiquei curioso. Ele comprou as facas? ou ele perdeu o encontro por nada? se é que teria um, sei la, acho que sim.

    1. Avatar de Perce Polegatto
      Perce Polegatto

      Luiz, no final do texto há um link para o próximo capítulo em todos eles.
      Pode parecer interrompido, intercalado com os flash-backs, mas continua sempre no próximo. No caso deste, continua aqui, dá uma olhada…

      Deixando a fortaleza
      https://www.percepolegatto.com.br/2013/01/26/deixando-a-fortaleza/

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