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Advento da mancha sinistra
Um inverno e outra fria manhã dos que se procuram. Ela olhou o relógio, afastando de leve a manga do casaco. Ele fez o mesmo, imitando-a sem perceber. Daí em diante, por um motivo qualquer, mas que lhes servia a ambos, passaram a caminhar num ritmo ligeiramente mais tenso. Júlio esbarrou num casal que acabava de virar a esquina: estavam muito abraçados, e fizeram uma volta quase completa sobre si mesmos, por pouco não caindo juntos. Não foi nada.
“Você também não está a par de tudo, quer ver? Eu perdi parte da minha visão umas semanas atrás: fiquei cego do olho direito. Sabia?”
“Não sabia. Não dá pra perceber”, tornando a procurar o rosto dele enquanto andavam.
“Eu percebo.”
“Não dá pra perceber”, ela outra vez, no mesmo tom. “Você superou muito bem essa dificuldade.”
“Ah, não me venha com as tais motivações e conversas de grupos de apoio, você sabe que eu não caio nessas.”
“O que eu quero dizer é que tudo tem seu lado bom, só isso. Aposto que até isso tem um lado bom.”
“Tem. O esquerdo.”
“Que bobo. Como foi isso, algum acidente?”
“Uma estranha mancha surgida de chofre, enviada por Deus, na manhã de um verão sem presságios, atingiu-me em cheio o fundo do olho direito. Primeiro, com uma luz tão intensa que, se pudesse estender-se para além de mim, ofuscaria as vértebras da Via Láctea. E iluminaria o centro desta cidade por todo o período de compras que antecede o Natal.”
“Muito engraçado.”
“Mas devo reconhecer que não foi de todo um golpe baixo. Pouco antes, um anjo mensageiro, vindo do nada, entre a multidão, surgiu à minha frente, era o sinal: uma criatura loira, cabelos claros e longos, vestido alvo, de tecido leve – só não estava descalça, o que era de se esperar de um anjo urbano. Perguntou-me docemente as horas. Pareceu estranhar que eu levasse as mãos aos olhos, sem lhe responder à senha sagrada, além de blasfemar, eu dizendo-me em voz alta: ‘Que diabo é isso? O que está acontecendo com o meu…’ E desapareceu em seguida, quando eu tornava a abrir os olhos para o mundo. Eis que a luz foi aos poucos esmaecendo e escurecendo, até deixar esta estranha mancha sinistra, talvez para sempre. Salve!”
“Ah, que pena: você quer me fazer rir. O que era afinal?”
Os últimos dias de agosto
100. Explicação do surgimento da mancha sinistra – sequência
98. E os trens funcionando perfeitamente – anterior
Imagem: Hans Hoffmann. A parede dourada 2 (detalhe inferior). 1961.
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