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Com Sylvia, em delicada decadência
Sob a proteção do silêncio e da mentira, para que ninguém o pudesse ler em meus olhos o absurdo de estar apaixonado.
O ônibus teve de parar, logo ao deixar o ponto, a pedido de uns que alertavam o motorista: o que estava acontecendo?, perguntavam todos, sem palavras, só de voltarem a cabeça na mesma direção. Eu, como os outros ali, assistia ao súbito contratempo, ainda sem atinar com o que fosse, pois acabava de suceder algo a um homem idoso, em roupas simples e muito usadas, rosto de pele como sulcada por muitos anos de trabalho e vida, que, enquanto entrava no carro, ao pisar o primeiro degrau da entrada e antes que se voltasse a fechar a porta automática, deixara cair seus óculos na rua. Ele próprio, um olhar estreito de míope e sorriso ingênuo, como os são os de muitas dessas pessoas, enquanto o coletivo partia num arranque, voltara-se por um instante, com muda resignação, como se, em silêncio, dissesse: “Bem, paciência…”. Mas três outros homens, entre os que presenciaram o incidente, desceram em busca dos óculos, que não se haviam quebrado, tudo a poucos passos dali, e voltaram em seguida, dando sinal ao motorista de que já podiam prosseguir viagem. O homem simplório, constrangido de gratidão, demonstrava uma incontida alegria, ampliando o sorriso, que parecia sempre pronto a abrir-se, desejando aos amigos mais recentes que Deus lhes retribuísse aquilo tudo da melhor maneira, enquanto os voluntários brincavam, para amenizar a solenidade com que ele os tratava. “Por pouco, hein, tio? Sorte que caiu na grama.” “Agora o senhor já pode ler seu jornalzinho sem problema.” “Obrigado, filho, que Deus te abençoe. Eu não sei ler. Mas sem óculos eu não enxergo nada, nada…” Certo de que o tempo sempre está nos seguindo por toda parte, só eu parecia mudo ali. Eu era o mais jovem dos rapazes voluntários, era também o velho enternecido, era também o que apenas eu era, sentado ali, sobre a minha idade atual, consciente de que os meus óculos se perderiam um dia, um dia que viria ainda, portanto um dia que já era meu de alguma forma, sendo ainda a minha vez de subir ao ônibus, minha vez de assistir ao mundo pela janela de vidro, será minha vez de saltar, minha vez de perder a vista. Se conto a alguém sobre o que tenho visto, dia e outro, muitas vezes escuto em troca: “Isso dá uma crônica, hein? Isso dá um conto. Isso dá um livro…”. Mas nada disso é necessário. Nada disso é melhor ou pior do que a verdade. Chego a ter pena dos que tanto recorrem aos livros. As coisas estão sempre acontecendo por toda parte.
Dia seguinte, eu à mesma mesa de trabalho, que era a minha (diz-se minha e sua mesa e mesa dele e mesa dela – como se algo fosse nosso ali). Clemente passando por mim, da mesma maneira como no dia anterior, quase à mesma hora, quase tudo se repetia, quase eu sonhava, quase não mais entendia, quase eu emudecia. Mas nunca gritava.
“Que foi hoje?”
Olhei para ele com cara de quem está querendo dizer alguma coisa. Ele percebeu, hesitou, balançou a cabeça para cima e para baixo, por sua vez assumiu aquela cara de quem diz: “Eu sei muito bem que você está prestes a aprontar das suas.”.
“Vai, fala. O que é que há?”, começou ele, meio maternal, curvando-se perto de mim.
“Falar o quê? O que quer que eu diga?”
“Ai, menino, está escrito na sua testa que você hoje…”
“Às vezes eu penso que só os políticos dizem a verdade”, falei de repente, mas sem pretender assustá-lo.
“O quê? Que absurdo é esse agora?”
“E nós sim é que vivemos mentindo uns aos outros. E sabe do que mais? Nosso povo não é vítima da injustiça, como você pensava, mas da Justiça.”
Clemente da Trindade postou-se ereto novamente, firmando um pé e outro com um som semelhante ao de um soldado que bate as botas, aqui sem duplo sentido e sem insinuação alguma, apenas ele se deteve assim, bruscamente, com as mãos na cintura.
“Eu ouvi o que eu ouvi, é?”
Repeti o que tinha acabado de dizer. Repeti claramente o que tinha acabado de dizer – quase inteiramente fiel às mesmas palavras, em sua sequência. Fiquei esperando que ele respondesse algo.
“Ai, cruzes!”, afastou Clemente da Trindade, com um gesto que lembrava tanto uma repulsa suave quanto uma recaída supersticiosa. “Anda de um jeito ultimamente. Eu, hein?”
Essas coisas giravam e giravam em meu cérebro, como se disso dependesse minha sobrevivência, mas claro que não dependia nada. Pensei que mal houvera tempo de se habituar à tal reengenharia, e logo a atropelavam os sintomas de uma possível globalização, termo que, por sua vez, como bem nos mostram as lições da história, tem seus dias contados. O que permanece, no fundo, são as antigas relações, pois tudo configura infinitas variantes das mesmas máscaras de domínio e perversão, o que se procura amenizar com tais e tais e outras tais palavras. E temos de nos adaptar, necessariamente. E temos de fingir que o jogo é honesto, claro. Temos de aprender as palavras novas. E usá-las.
“Parabéns!”, Cândido vinha se aproximando, mão estendida, eu de pé junto a um armário, repassando um processo. Não lhe estendi a mão.
“O que foi dessa vez? Ah! O relatório semanal… Olha, quer saber? Enfia no rabo essas suas ironias, que eu já estou…”
“Não, não é isso. Que bobo. Você não errou nada no relatório. Só que foi o primeiro a perceber que o doutor Aguiar tinha mesmo culpa no cartório. Aquela história toda, lembra? Mas, cá entre nós…”
Deixei que ele apertasse minha mão. Concessões fáceis, sei que ele fica satisfeito com isso.
“Parabéns, estrategista.”
“Também sem trocadilhos, você quer dizer. Isso da culpa em cartório, sabe, pode ser cartório mesmo. Olha, pra falar a verdade, eu não tinha certeza de nada.”
“Mas aquela conversa que nós tivemos no bar, menino, você acertou em cheio! Acho que o álcool estimula seus dons premonitórios, você já pensou nisso? Ai, que inveja…”
Não era nada disso. Eu não tinha dom premonitório nenhum. As coisas ficavam cada vez mais visíveis para mim, e isso fazia parte de certas mudanças internas que iam acarretando um processo de metabolismo de assimilações, alguma química de consciência, descarga de surpresas acumuladas e choques racionais. Era, no fundo, o que tanto os outros percebiam e identificavam em minhas reações, nem meus colegas atinando com o que era, bem menos eu.
“Menino, mas deu a sua aposta! Um dia você vai me ensinar isso. Promete?”
“Não.”
Tornara-se dispensável ater-se à obrigatoriedade e à clareza irrefutável de eventuais provas concretas, que por vezes nunca as havia, que tão normalmente eram apagadas, desviadas, extraviadas, fraudadas, arquivadas, destruídas. Era óbvio que nenhum desses canalhas deixaria qualquer tipo de documentação comprometedora à vista de eventuais investigadores ou jornalistas. Mas era tudo demasiado evidente. Cada vez mais nítido e óbvio. Como não pudera ser antes? Como não pudera ser sempre? Como não a todos?
“Viram ontem o depoimento do ministro? É o que eu digo: ficam acusando sem provas, só atrapalham o governo, a administração, querem sempre que as coisas saiam dos trilhos, é o que eu sempre digo. No fim, gostei de ver: ele negou tudo e ainda respondeu grosso àquela jornalistazinha que não largava do assunto. E que firmeza, que personalidade…”
“Ele é culpado”, disse eu, sem erguer os olhos de minhas tarefas.
“O quê?”, disse meu colega do bigode, com nova expressão facial, que por esses dias havia rapado o bigode.
“Por isso ele nega tudo e não permite que o investiguem. O apartamento da praia foi comprado com nosso dinheiro. Para a amante dele. Dinheiro de todos nós. De nosso trabalho, aliás. Claro que você sabe disso.”
Eu estava me tornando um clarividente. Logo iria me oferecer para ajudar a polícia.
“Não acredito: outro jornalistazinho de esquerda aqui dentro, boa essa, hein?”, escarnecia, com superioridade, o colega do bigode intermitente, sem mesmo se dar o trabalho de encontrar outra definição que não a de jornalistazinho. Sempre a primeira palavra que lhe vinha à cabeça. Sempre alguma coisa imediata, de ontem, de hoje. Qualquer coisa que dizem fica valendo, passa a valer, assim é esse sujeito, assim são esses homens.
“É melhor começar a se enxergar, colega. Anda falando demais ultimamente. E sem provas.”
“Falo muito pouco. Quase nada. Quase nunca.”
“Como? Fala mais alto.”
“Não é uma questão de volume, não sou rádio. E nem adiantaria que fosse”, acrescentei com o mesmo desânimo.
“Não dá pra entender mais essas suas brincadeiras, eu não estou vendo graça nenhuma. Mais dia, menos dia, e vão pensar que você faz parte dessa turma que vive torcendo para que nada dê certo neste país, olha o que eu estou te dizendo, hein? Presta atenção. É o que eu digo.”
“Muito prudente conselho. Sou-lhe grato, camarada”, eu que, até então, em nenhum momento, havia levantado a cabeça ou lhe dirigido o rosto. A última palavra que eu disse o pôs preocupado.
“Olha aqui, não brinca desse jeito”, avisou esse colega, enrubescendo, com o medo e a seriedade próprios de um animalzinho sem futuro. “Não brinca assim, você me respeite. Tenho família, ouviu? Pelo menos, não vá dizer nada disso perto de mim, hein? Tá me ouvindo?”
Eu, para que ao menos ele saísse puto e preocupado mesmo: “Não.”.
Como não mais dissociava de minha vida real a literatura e o pensamento e outras coisas assim, como já disse antes, via à frente de minha memória os diferentes rostos de Sylvia Plath, entre os papéis de minha mesa de trabalho e à sombra dos que passavam ali por perto, para lá e para cá, agentes do cotidiano conhecido e de nossa vida prática, aliás, outra fabulosa expressão esta, que o digam esses homens. Em meio ao expediente, portanto, fiquei pensando nela. Quando olhava, em fotos, os rostos de Sylvia Plath, uma adolescente e uma mulher, quase podia encontrá-la em uma casa como a minha e como a dela, com varanda e degraus, como a que eu habitava com minha mãe em minha cidade de origem, eu não podia crer que isso tudo, falo agora de Sylvia, já houvesse passado. Podia estar sentado ao lado dela, talvez procurássemos formas nas nuvens. Talvez fechássemos os olhos ao mesmo tempo. Talvez dividíssemos um doce. A poesia a guardara para mim. E agora nos tocamos sob essa estranha condição, meus dedos afagando a superfície de seus olhos, seus versos alcançando aquele que a poderia ter amado de verdade. O tempo nos havia impedido, a nós, que talvez houvéssemos vivenciado e sofrido conflitos muito semelhantes, que teríamos percebido com a mesma intensidade os degraus e as varandas do solar inconcebível que somente nos serviria em meio aos cenários de um sonho. Tudo o que eu escrevia sobre Sylvia Plath dava-se em segredo, sob a proteção do silêncio e da mentira, para que ninguém o pudesse ler em meus olhos enquanto eu falasse, pois nem a mim mesmo poderia admitir o absurdo de estar apaixonado.
E admirava seus poemas. Como milhares de leitores, nunca eu perdera a consciência disso, antes que alguma vaga impressão me deixasse levar por crenças estapafúrdias, como a de que seríamos almas gêmeas ou de que teríamos nos encontrado uma vez no Céu ou numa vida passada ou em outra galáxia. De repente, me lembrei de que havia sonhado com ela. Muitas vezes acontece assim, a memória do sonho emergindo em meio à tarde, quando não mais esperávamos entrevê-la. Percebi que alguém batia levemente em meu ombro, como obrigando-me a despertar. Por sorte, era Cândido.
“Esta noite”, disse eu, olhando-o nos olhos, enquanto ele, paralisado, só começava a abrir a boca, “sonhei com a única mulher capaz de me fazer trair.”
Cândido Rosário Cruz abriu a boca. E assim ficou. Eu o olhava impassível, mas firmemente, sem o menor constrangimento por haver-lhe interrompido os gestos ou a intenção de dirigir-me a palavra. Após esse embaraçado silêncio, ele disse:
“Eu, hein…”
A seta de Verena – Guia de leitura
60. Conquista-me ou te destruo – sequência
58. Nada que não seja a vida – anterior
Imagem: Pierre Bonnard. A carta. 1906.
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