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Você era puro e não sabia
Minha vida é aqui onde eu estou, com meu corpo. E com meus dias.
Conte ao Verne, conte de como uma vez pensou em envelhecer naquela vila, na última porta da varanda escurecida de plantas. Conte a ele, que é seu amigo de verdade, vamos ver se você mesmo ri ou se suspira aliviado por ter evitado sua própria quase planejada tragédia.
“Puxa, as coisas que a gente pensava, não é?”, lembra Danilo com um sorriso de autopiedade, servindo aos dois, a ele e ao Verne, e aos outros também, por extensão.
“Pior era quando a gente agia”, Verne bem-humorado.
Conte a ele, ele é seu amigo, vocês estão juntos por um momento de sorte, depois de tantos anos. E agora, outra vez, com uma cerveja à frente. Não é isso? É isso.
“Eu fui uma vez, a serviço, ver um endereço de um devedor do escritório. Era uma dessas ruazinhas sem saída que começam no meio de um quarteirão, sabe? Achei aquilo ali meio infantil, quase um cenário de livros ilustrados, mas sem nada de colorido ou alegre. Imaginei de repente que era ali que eu queria viver, que eu queria morar. E que eu queria morrer. Naquele tempo, a gente acompanhava no dia a dia os valores do mercado imobiliário, cotação dos veículos e tudo isso e tal, então eu não estava, em nenhum momento, pensando no valor de uma casa ali, que devia ser pouco, uma rua antiga, umas casinhas limpas, mas fora de moda, pequenas, simples. Eu só queria era morar ali. Planejei, num instante, em um centavo de segundo, passar a minha velhice num lugar daqueles, depois de ter feito tanta coisa na vida, tanta coisa no mundo. Só isso me fez sorrir por dentro. Afinal, a gente precisava de tão pouco, não é? Por que se esforçar tanto para ter este ou aquele apartamento, aquela ótima casa enorme e outros luxos? Mas aí, perguntando em uma casa e outra onde encontraria o tal sujeito que estava devendo pra nós…”
“Pra nós, não. O escritório…”, Verne interrompendo até o gole de cerveja que já ia descendo. Verdade, é importante atentar para coisas assim. Somos culturalmente escravos e não nos damos conta disso. Quem faz as contas, aliás, são os patrões.
“Sim, claro. Modo de falar.”
“Vai. E aí?”
“Então saiu, da última casa, um velho meio encardido, camisa aberta, a boca se mexendo o tempo todo, como se mastigasse o ar ou estivesse mascando um chiclete invisível, e falou, de intrometido, que o cara tinha se mudado de lá uma semana atrás e coisa e tal. O velho disse também que era viúvo, que morava sozinho ali, comia de marmita, essas coisas todas, tudo meio deprimente, tudo sem eu perguntar. Tinha mau hálito e, pelo jeito, não pensava muito bem coisa com coisa.”
“E aí? Achou o cara?”
“Não, Verne, o caso não é esse. Não achei o cara nada. Não é por isso que estou te contando. É que esse velho, surgindo da varanda escura, que até então eu achava linda, como de uma casinha encantada, fez desabar uma nuvem escura em cima de mim. Meu encanto se foi, num instante. Tudo ali era num instante, tudo isso aconteceu em instantes. E, olha só, me marcou até hoje, que coisa…”, gira o copo na mesa, entre os dedos, como buscando encontrar algo no líquido dourado.
“Que coisa…”
“Imaginei que seria trágico envelhecer ali, ao contrário do que eu pensava… um instante atrás, vou falar de novo, pronto, tudo de um instante a outro. Eu pensava: minha vida é o meu corpo e os meus dias. Ali, na casa ao lado, não está o meu corpo, não estou eu. Ali não é a minha vida. Minha vida é aqui onde eu estou, com meu corpo. E com meus dias. Em meu cérebro (que está aqui comigo, em meu corpo), pode se desenvolver toda a hierarquia do reino das fadas, as decepções das sereias, a surpresa de lutar com um lobisomem na floresta. Em meu cérebro, eu crio o céu e os anjos, o inferno e os demônios. Mas nada disso existe. A minha vida é o que existe. Minha vida é o meu corpo e os meus dias. Esse velho não sou eu. Essa casa aí não sou eu. Não vou criar nada disso pra mim.”
“Olha só”, Verne entre atento e quase sorridente. “Quando eu digo que você devia escrever…”, volta o copo à mesa, olha uma mulher que passa, saia e salto alto, torna a encarar Danilo com ar de felicidade.
“De início, eu tinha olhado essa casa velha, está bom pra mim: um homem só tem um corpo e vinte e quatro horas, e daí? Não pode dormir em mais de uma cama ao mesmo tempo. E com isso, já tinha decidido meu futuro: foda-se o dinheiro. Jamais participar desse sistema carcomido, oportunista e corrupto que faz do mundo um grande câncer capitalista. Eu só precisava de um cantinho pra… pra escrever meus livros. Entende? Ahahah… Os repórteres teriam que me procurar ali, no meio do quarteirão. No fim da rua, no fim do mundo. ‘O que fez com o dinheiro do prêmio Nobel, Senhor Escritor?’, perguntaria um jovem jornalista com a vida toda pela frente. ‘Eu o distribuí entre os pobres de meu país’, responderia naturalmente, isso com uma expressão fisionômica einsteiniana, os olhos sugerindo calma e sabedoria. Lembre-se: a beleza, a verdade e a bondade. E sempre acabava meus pequenos discursos imaginários com esse meu pais.”
“Ahahah… Isso é meio engraçado e… também um pouco triste, não sei. Mas você era puro, eu não imaginava tanto. Era bem-intencionado. Humilde, no fundo. Você era puro e não sabia.”
“Olha, Verne, ouvir isso de você é uma honra, viu? Ou algum golpe. Você não quer me fazer chorar, quer?”
Os copos de cerveja quase se erguem ao mesmo tempo.
“Que se dane. Virando mulherzinha depois disso tudo? Ahahah… O que eu digo é que você aspirava a pouco. Precisava de pouco. O caminho de um sábio.”
“Ah, entendi. O que você quer é me fazer rir então.”
“Ahahah… Posso rir junto? Não, Danilo, mas não é isso, meu velho. É que no fundo você não precisava de muito, além de seus livros, seu pensamento, suas histórias, isso era o que realmente importava, era o que importava de verdade pra você. Acho que só faltou entender isso mais cedo, quem sabe…”
“Quem sabe… Quem sabe… Bobagem lamentar qualquer coisa agora. O jeito é rir de tudo mesmo.”
“É. É bobagem mesmo. Mas não é bobagem reviver umas coisas pra poder fazer outras coisas agora, não é? Faz parte da vida. Por isso você se contentava com aquela casa, aquela vila. Porque estava em busca de algo muito maior, você sabe.”
“O prêmio Nobel…”
“Ahahah… Não, claro que não, você sabe, eu sei que não. Algo maior eram suas histórias, suas ideias. Era você mesmo.”
Danilo deita a garrafa, enche o copo de Verne, depois o seu.
“Cara, você não era assim. Estou gostando de ver. Você fez terapia, já entendi. É isso, não é? Você fez terapia, Verne, fala a verdade. Traidor.”
“Ahahah… A gente cresce, velho. Não tem jeito.”
“Estou contente de te ver assim, contente mesmo. Você merece. Eu te amo, velho.”
“Ah, não vem com essa! Você também merece. Mas não tem nada a ver, o mundo não é justo mesmo. O mundo é até feio demais. Merece, não merece… O mundo é feio, a vida é feia. As coisas acontecem de um jeito ou de outro. E então, mais alguma coisa que eu não fiquei sabendo nesse tempo todo?”
Danilo pensa um pouco. Gira o copo.
“Acho que… você não ficou sabendo que meu pai faleceu.”
Marcas de gentis predadores – Guia de leitura
36. Espirais desnecessárias – sequência
34. Você ainda tem essa arma? – anterior
Imagem: Pablo Picasso. Acrobata e jovem arlequim. 1905.
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Comentários
Uma resposta para “Você era puro e não sabia”
in vino veritas,Belo.
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