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Nada que não seja a vida
É o privilégio de pensar o que dissolve os deuses, restitui-me os olhos, faz de mim um homem.
Já pensei que o certo era trancar-me no quarto e escrever algo belo. Já pensei também que o certo, mesmo, era deitar tudo isso fora e viajar, viver com mulheres. Já pensei em conciliar um e outro, mulheres e livros, Sylvia e meus ótimos rascunhos. Oh, Sylvia… – será que o paraíso existe? (Já pensei muito, como se vê.) Hoje sei que tudo passa, ao mesmo tempo sei que ainda estou aqui. Que mais eu sei que não seja parecido com outra espiral de minhas péssimas reflexões confusas?
Comecei acreditando em Deus, Jesus e seus derivados. Santa Luzia me protegia – mesmo assim, minha vista ia de mal a pior. Passei à reencarnação dos budistas até compreender que não éramos necessários e que a evolução constante, como querem os kardecistas, não conduz à perfeição, ou não seria constante. No entanto, é preciso ter alguma esperança. Não somos crocodilos nem hipopótamos, precisamos de futuro, e só porque a vida termina um dia, isso não significa que nada tenha sentido. É possível pensar o mesmo acreditando-se em tudo, pois o objetivo último é de uma insensatez patética e sempre paradoxal, sendo preciso lembrar que também isto são palavras e palavras, e não sou eu quem detém a palavra final, felizmente. Não me é possível cultivar fantasias como as dos religiosos, mas não posso pregar a mim mesmo que a vida seja inútil só porque não a compreendo inteiramente. Descobri, pelo menos, que não me interessava ser perfeito, muito menos eterno. E encontrei meu destino de não crer em nada que não fosse a vida, o que já é bastante complexo, embora pareça simples. Nada paga a liberdade de pensamento. E não há prazer maior que a inteligência. É o privilégio de pensar o que dissolve os deuses, restitui-me os olhos, faz de mim um homem.
Eu afixava lembretes, ideias e toda sorte de anotações na parede em frente à escrivaninha, papéis como este:
Kapila, o hindu, afirma que o universo existe sempre e, portanto, não se originou do nada. Na sucessão de causas, haverá um termo final que será também o fim do pensamento.
Tudo que me interessasse de alguma forma ou me fizesse questionar verdades viciadas, me aproximasse de novas relações, novas ideias, como já disse.
Quando finalmente fui demitido da Leôncio & Barradas Advocacia Ltda., muitas dessas anotações rodopiaram em minha cabeça. A literatura já participava intensa e concretamente de minha vida prática, a ponto de eu não mais poder dissociá-las. Sim, o inferno, meu amigo.
Tive de me mudar do apartamento, acabei num quarto de pensão. Meu dinheiro estava se esgotando assustadoramente, ainda que eu não gastasse mais do que o necessário e chegasse mesmo a poupá-lo às portas de uma sovinice esquizofrênica – mas isso enquanto não sabia da existência de Mônica e só enquanto não conseguia outro emprego.
Não consegui outro emprego. Usei isso como pretexto para iniciar-me como escritor, o que, racionalmente, seria um absurdo. Não me importava habitar uma cela estreita, uma pensão precária, desde que ali se criassem condições propícias para que eu pudesse desenvolver meus textos. Nunca entendi se aquilo me havia feito um bem ou um mal, pois, no final das contas, entre o Céu e o Inferno, alguma coisa sempre se aprende. O melhor de mim está em mim mesmo. E escrever daquele jeito, nunca mais.
No começo, ocorreu-me enviar cartas a alguns colegas do escritório e vizinhos do prédio, pois considerava importante cultivar amizades. Porém, alguma coisa pulsava em outra direção e me impedia. A esses, não os vi nunca mais. Não escrevi, não telefonei, não voltei ao bairro nem ao escritório. Morri para eles, por minha vez matei o que eu havia sido até então. Pois eu já havia lido em algum lugar que, na verdade, morremos para o que fomos, enquanto nascemos para o que hoje somos. Eu agora me sentia outro. Me sentia vivo. E continuava, folheando um livro em meio a minhas pestilentas medíocres filosofias, tornando a deparar com o conhecido perfil de Júlio César, cunhado em sua moeda antiga: frente àquela efígie, ali estava eu, hoje mais importante que o imperador, que já desaparecera e não mais servia ao seu império, como a nenhum outro, seu império que, por sua vez, também há muito encontrara a extinção, eu ali tanto quanto alguém no futuro diante deste texto, resultante de uma vaga reflexão apenas, enquanto também não se esfarinhem os papéis que o comportam, e será este leitor bem mais importante do que eu, pois estará vivo.
Quero continuar vivendo de minhas próprias forças. E não perder um dia, uma noite sequer, com algo em que eu não acredite. Hoje me encontro à parte dos homens, mais perto da vida. Hoje não tenho pressa, que descobri o tempo. Hoje posso sonhar ou não ser, que tenho à minha volta nada menos que o universo. E sei que ninguém me inveja. Hoje sou o que ninguém quer ser.
A seta de Verena – Guia de leitura
59. Com Sylvia, em delicada decadência – sequência
57. Sinais claros de estados obscuros – anterior
Imagem: Pavel Otdelnov. Confissão. 2006.
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