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Sinais claros de estados obscuros
Fecho os olhos e a ouço escrevendo a mim: querido, por favor, não enlouqueça.
“Por favor…”, disse educadamente a mulher grisalha de rosto rosado.
“Pois não”, respondi cordial, retribuindo-lhe um leve sorriso.
Assim eu atendia os clientes que porventura se aproximavam de minha parte do balcão. Isso de mulher grisalha e rosto rosado parece uma velha fórmula descritiva, à maneira dos cadernos para colorir que usam tintas cor da pele, mas de fato há pessoas assim, e eis que as tenho visto com estes meus olhos que a terra há de colher, estes mesmos olhos que a tudo buscam com exatidão, avessos a distorções desnecessárias e sempre atentos à manutenção das mais límpidas lucidez e coerência.
“Por favor…”, disse educadamente o homem grisalho de rosto rosado.
“Pois não”, respondi cordial, retribuindo-lhe um leve sorriso.
“Por favor”, fez o mutante de grandes globos oculares sanguíneos e brotoejas pelo rosto rosado.
“Pois não”, falei irritado, erguendo-me da mesa, pronto a afrontá-lo.
“Por favor!”, berrou o pavoroso demônio de língua pontiaguda e baba ácida, envolto em labaredas.
“Pois não!”, urrei com toda a força de meu ódio, quase lhe cuspindo veneno à cara.
“Por favor!!!”
“Pois não!!!”
Eu não estava bem. Não mesmo. Não estava nada bem. Era preciso fazer algo. Não podia mais. Não me acudia mais a consciência quando minha perigosa imaginação entrava em cena, entrava em crise, entrava em curto. Qualquer simples pedido parecia-me um grande sacrifício. Uma frase de duas palavras parecia longa demais para minha breve paciência. Pessoas de rosto rosado transmudavam-se em demônios perigosos. Eu próprio agia e me movimentava entre a neblina de um surdo pesadelo, que me punha feito um guerreiro inebriado pela violência. Mas piscava os olhos e estava de volta à realidade mais evidente. E os fechava, outro era o mundo que deveria esperar por mim. Assim, talvez, foi que minha querida Sylvia compôs sua canção da jovem louca. Fecho os olhos e a ouço escrevendo a mim: querido, por favor, não enlouqueça.
Minha mente não mais se envolvia com o cotidiano sem se perder em divagações fora de propósito. No meio de tudo aquilo, eu pensava: será que em alguma parte do espaço-tempo, o mesmo universo que já tantas vezes redefinimos e ainda tornaremos a definir, estará isto acontecendo de novo? Como serão os homens e os deuses de outra inteligência? Seriam mamíferos ou o quê? Teriam outra história, outros mapas, outras línguas, outras leis… Teriam olhos, voariam naturalmente? Eu podia ver o escritório em ruínas. E os ossos de todos nós. Podia ver agitadas colônias de micro-organismos, movendo-se surdamente, agitando os rabinhos na sopa do pântano, para começar tudo, tudo outra vez. Vida dura, companheiro.
A seta de Verena – Guia de leitura
58. Nada que não seja a vida – sequência
56. Senhores de tudo (e agora abençoados) – anterior
Imagem: Hans Hoffmann. A parede dourada. 1961.
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