Office in a Small City por Edward Hopper

Lapsos de cegueira e lucidez

Era certo também que nunca antes se sentira tão próximo a alguma coisa, como sempre não podendo descrevê-la.

Robert Motherwell. Iberia 18. 1958Em diversas fases da história, as civilizações foram alguma vez tão imponentes e sólidas que ninguém, em seu próprio tempo, poderia crer que elas um dia viessem a encontrar seu fim. Aquelas que, por algum motivo, se estenderam ao presente foram pouco a pouco transformadas, reconstruídas de tal maneira que um monumento ou um sepulcro guardam ainda alguma memória do que já não existe. E que não haverá de se repetir. Dentre as mais antigas, algumas, apesar dos progressos e esforços dos pesquisadores, permanecem fora de nosso alcance, como se, antes de desaparecerem quase sem deixar pistas, uma nuvem que movesse uma pedra as encerrasse dentro de uma urna de relevos para sempre. Assim, toda a vida que teria transcorrido por tais cidades ou impérios resumia-se a areia e cinzas, não, agora nem mesmo algo assim identificável, produto de metáforas grosseiras e utilizadas há milênios. Enquanto isso (isso o quê?), Júlio percorria as ruas de seu tempo, deparando com infinitos rostos dos tantos outros, dos tantos ele, cruzando-se entre si aos milhões, entre os dias milhares das cidades centenas, cidades infinitamente habitadas por toda a Terra, esquinas e fachadas vistas por outros, realidade vista por outros, e quando ele não mais vivesse, não mais visse, outros absorveriam os cenários, as ruas reais, festejariam a primavera na manhã de um jardim de sol ou quedariam melancólicos ante fachadas salitrosas e noturnas, teriam outros pensamentos, outras respostas, também, com um pouco de sorte, talvez outras perguntas. Por isso, ele se sentia, rotineiramente, como desentranhado da ordem da vida sobre o planeta, do mar magnífico e da lama, dos cadáveres e cérebros apodrecidos que participavam sem saber dessa busca, pistas e sinais que lhe servissem como base para projetar, covarde e atrevidamente, suas interrogações. O que estava acontecendo? O que era aquilo tudo? O fato de ele ainda não vislumbrar uma razão aceitável para a vida tornava mais encantadora e opressiva sua aventura.

Era certo também que nunca antes se sentira tão próximo a alguma coisa, como sempre não podendo descrevê-la. Não sabia por quê, ocorria-lhe, como fora de propósito, que havia algo no fato de os seres vivos devorarem uns aos outros, e de a vida alimentar-se de si mesma. Esse algo, por assim dizer, que envolvia toda fauna e flora possíveis, desde o pacato herbívoro ao mais estranho dos insetos, não esquecendo as aves e os ratos, o imponente leão e o mais frágil dos mosquitos, quase se lançava à sua frente, num golpe de afortunada lucidez, como quando Charles Darwin supunha estar diante do mistério dos mistérios, na iminência de atinar com a clara definição de sua teoria – que passaria a ser a sua descoberta. Júlio admitia, com um ridículo arrepio, o perigo das grandes abrangências, a paradoxal cegueira dos lapsos de lucidez que atingiam e castigavam as consciências clarividentes, os pensamentos muito amplos, lidando com dimensões e grandezas fora de seu real alcance. Atingiam e castigavam… “Ora, vejam, estou me tornando bíblico”, pensou, quase mastigando o cigarro. “Castigo aos que veem, dom da clarividência, limite dos sentidos visuais, homem-deus, deus-escorpião. Vamos, você já se saiu melhor, a caminho do trabalho.” Porque os infinitos cidadãos vivenciavam as noções mais imediatas e os curtos prazos humanos, faziam-se a realidade e a sobrevivência mais verdadeiras e consistentes para cada um, entre esses que se acumulavam nas duas margens das grandes avenidas, e, quando se abria o sinal, ganhavam as faixas apressadamente, tempo permitido para que apenas se movessem de um lado a outro, de uma parte a outra, do alfa ao ômega, todos os que não haveriam de ver-se uma vez mais, passando uns pelos outros como se nenhum mistério primordial os impulsionasse e os unisse, e para onde iam?, insistia a clássica perguntinha. Se perguntasse a um deles, detendo-o pelo braço, por exemplo, o para-onde-você-vai, talvez ouvisse em troca: “Para o escritório.” ou “Para casa, almoçar.”. E você, Júlio? Em meio a tudo, uma mulher no café. À espera de, ao encontro de. Por que forçar tanto tais expressões? Outra presença consistente e temporária, mas que punha toda a ampla realidade a diluir-se outra vez, a queda do relâmpago, fazendo-a convergir a um ponto-chave, o vértice das civilizações e dos invernos, agora, querendo ou não, voltando-lhe com sua imagem, um nome como inscrito nos relevos, seu rosto e a voz que a ilustrava, junto às costuras das enciclopédias. E ela o informara de sua frequência no café, antes do expediente, convite mal esboçado mas sutil, mas convite, que um cérebro malicioso como o dele rapidamente equacionava e concluía. Quando quisesse, dissera depois, dissipando dúvidas. Júlio prometera que sim, sempre que caísse da cama, embora não se encontrasse mais em condições, àquela altura de seus dias, de prometer o que fosse.

Os últimos dias de agosto – Guia de leitura

93. De um passado em tons de cinza – sequência

91. Café com neblina imprevista – anterior

Imagem: Robert Motherwell. Iberia 18. 1958.

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