Office in a Small City por Edward Hopper

O aprendiz de feiticeiros

Danilo se dirige em sonhos aos seus fantasmas literários, vivos e mortos.
Bate levemente um livro sobre outro, produzindo poeira e ideias fracas.

John Cook. A lanternaIa chamá-lo Sir Golding quando me lembrei de que você não foi agraciado com esses títulos antiquados e pomposos. Os reis dessa sua terra homenageiam seus filhos famosos, que teriam realizado algo relevante, projetando o nome das ilhas no resto do mundo. Mas sagraram uns falsos rebeldes como Jagger e McCartney, até mesmo o ator Connery, e o deixaram esquecido dessas honrarias que, afinal, não combinariam muito com você. Eu lhe devo muito mais do que a essas figuras idolatradas do entretenimento. Eu aprendi, com seus meninos náufragos, que Rousseau tratava a vida com certa visão limitada e tendenciosa, enfim, com característica ingenuidade, o que é sempre perigoso. Eu aprendi, com sua ilha e com os novos e forçados habitantes da ilha, que o instinto vive nas profundezas de todos nós, por mais que o tentemos esquecer, sublimar ou negar, e mesmo que nos envergonhemos disso. Eu lhe devo algo, Mr. Golding. O senhor me ensinou como somos de verdade. O senhor me ensinou o mal.

Danilo se dirige em sonhos aos seus autores, seus mentores, seus fantasmas literários, vivos e mortos. Torna a ler os seus próprios textos, fecha um caderno, alinha uns papéis, bate levemente um livro sobre outro, produzindo poeira e ideias fracas, suspira abatido, concluindo que não pretende propriamente ser um escritor, só o que quer mesmo é escrever. Não é vontade de ser escritor. É vontade de escrever. É diferente, claro. Primeiro, parece-lhe ridículo pensar assim. Mas é verdadeiro. Ele está sendo, o quanto pode, verdadeiro, honesto consigo mesmo. Escritores têm agendas de compromissos orientados por seus agentes e editores, lançamentos de livros e noites de autógrafos, palestras programadas, entrevistas em diversos meios, viagens para conferências e mesas-redondas, isso sem contar certos eventos formais e solenidades como as que cercam aqueles que aceitam vestir o fardão das academias, sendo ironizados com o título de imortais. Não, de jeito nenhum. Isso de ser escritor ou é muito trabalhoso ou é a morte em vida. Ferreira Gullar não quer apodrecer no poema, não quer nada parecido com “múmia de flor dentro do livro”. Danilo também não. O mais importante é viver.

Nenhuma dessas atribuições da vida real dos escritores, nada disso o entusiasma muito. Ao contrário, só o enche de preguiça e tédio. Salinger confessou (por escrito), pouco antes de partir para seu isolamento voluntário e definitivo, que amava escrever, mas detestava publicidade e outros procedimentos envolvendo autores e livros. Saul Bellow disse algo como não querer pertencer ao círculo dourado de Truman Capote. Elias Canetti declarou-se farto de montar o “cavalo da pretensão” e, como se não bastasse, arrematou bravamente, concluindo que ainda não tinha conseguido tornar-se um ser humano. Puxa, como é que um cara tem coragem de dizer isso sobre si mesmo? Em público!

Danilo metaboliza todos esses testemunhos e atitudes. Constrói sua fortaleza de torres. Monta sua própria armadura. Escolhe seus melhores cavalos. Instala-se em seu endereço de inverno. Articula seu próprio jogo de contas a partir das ruínas e ossos do mundo mofado das letras – porém, sempre sem acreditar muito.

Veja o Guimarães Rosa: médico, morou na Alemanha, fumava um charutão, morreu de repente – um herói. Olhe a foto do Yeats, parece uma águia mansa, esse fundo de estantes quase fora de foco, que imagem fantástica. Veja o Octavio Paz e o Pablo Neruda, carreiras diplomáticas, vozes ativas de seu tempo, envolvidos com política, correndo riscos… – será? Se eu tivesse uma vida agitada assim, nem pensaria em ser poeta. Beckett se mudara da Irlanda para a França (para eles parece tão fácil, é tudo tão pertinho por ali) e dissera que preferia Paris em guerra à Irlanda em paz. Puxa, quanta coisa genial, em que lugares esses caras viviam, que coisas para se dizer de sua guerra e de sua terra… Até o portãozinho da casa de campo dos pais de Marcel Proust serviu para inspirar uma passagem inusitada de seu texto cristalino, mostrando que ele realmente aproveitava todo, sim, todo o seu tempo perdido. E o jovem Alain-Fournier, coitado, ele próprio desaparecido durante a Primeira Guerra, em algum bosque de ilusões perdidas, à margem de alguma sinistra trincheira, um cara tão promissor, que estava encontrando seu caminho literário, sua técnica, maldita guerra, não é? – a única vantagem, nesses casos, é ser amado como um herói, ser pranteado por ter sucumbido jovem, em combate. (Danilo ainda conserva algum arsenal de palavras assim, pranteado, ovacionado, empedernido, empertigado, mas que glossário empoeirado, para evitar-se dizer puído).

E você ainda sonha que pode ser um deles, isso sim é doentio. Não, definitivamente, você ainda é uma criança sem noção das condições reais. Você aí, nesse quartinho de bairro periférico enquanto os outros escritores viajam pelo mundo, dando palestras e entrevistas, autografando seus livros. Num café de Zurique ou numa esquina de Trieste encontram-se os gênios da literatura, os marcos da poesia, os ícones da vanguarda, hoje lendas extraviadas, apodrecidos no interior dos volumes que poucos leem. E você aí, debruçado nessa escrivaninha capenga, essa luminária antiga, de haste enferrujada, agora sim, finalmente começa a considerar suas chances, não é? Nenhuma, ao que parece. Lembra que Fernando Pessoa pretendia escrever a história de sua desgraça para provar que era sublime, sim, isso é mesmo inspirador, vamos admitir. Mas você, nesse quartinho estreito, precisa acumular um pouco mais de desgraças psíquicas para ser lembrado. Ou nem terá sofrido o bastante, ou nem terá escrito o bastante. Por esses dias, um distúrbio imprevisto danificou sua visão direita. Ainda é pouco. Você precisa de uma desgraça maior. Nem a cegueira será suficiente. Que merda total.

Finalmente chega à conclusão de que não deve mentir. De que não deve blefar, nem para si próprio nem para ninguém. (Tchekhov escreveu que quem é sincero está certo – e esses escribas-pensadores são as suas referências afinal.) Se é para perder, que perca de uma vez, que sucumba tragicamente, vergonhosamente, como no sonho do fidalgo Ramires, em que o primo nobre desse personagem, montando um cavalo negro, arranca-lhe os cabelos diante das gargalhadas humilhantes de seus inimigos sarracenos. Argh!, que mau agouro, não precisamos nos desgastar tanto, não é mesmo? Pouco mais leve, Georges Bataille afirmava que se sentia livre para fracassar. Recorda outros, muitos outros. Revê, moído pelo remorso, a capa crepuscular de sua primeira antologia de contos tristes. Ouve a tosse do velho distribuidor de livros, os ruídos na Rodoviária Velha enquanto pensa em William Golding. Mas é o fantasma de Kipling quem o acalenta por essa noite, aconselhando-o a tratar o sucesso e o fracasso como dois impostores. Não deixa de ser assim, é o que ele pensa. Ninguém é tão bem-sucedido quanto supõe ser. Ninguém fracassa tanto quanto aos outros parece. (Na verdade, os versos de Kipling referiam-se ao triunfo e ao desastre, mas assim mesmo essas palavras muito lhe parecem apropriadas, por que não?) Proust também disse algo sobre não haver nem conquistas fáceis nem derrotas definitivas. Traduções e adaptações de motivos diversos, direcionados à sua própria vida. Como a Sinfonia Nº. 5 de Shostakovich vai entrando em um reino de névoas, quase assumindo um silêncio, um silêncio comovente, que parece antecipar angústias sem remissão, mas que depois volta a crescer e a viver: capaz de tudo! Suas pálpebras caem pesadas, seu corpo declina, girando e flutuando lentamente sobre si mesmo, rumo ao abismo das incontáveis noites que se sucedem. Que não acorde transformado em um inseto, por favor. Lembre-se de que deve algo a William Golding e… Também a outros que… Não se importe. Todos morreram antes de nós. Não se importe muito. Não se importe… Quais palavras enfim, em que língua…?

Marcas de gentis predadores – Guia de leitura

20. Os mocinhos da matriz – sequência

18. Um dia, você abriu o jornal… – anterior

Imagem: John Cook. A lanterna.

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