Office in a Small City por Edward Hopper

Real e insuficiente

Não havia futuro em ficar assistindo a si mesmo entre os gestos mais simples, pois todo homem é feito para morrer, como uma casa um dia acaba demolida sem que interesse a alguém saber o que guardava entre seus cômodos.

Alfie Scheinman. Multidão em rua de LiverpoolHá várias noites não conseguia dormir bem. Tinha sono à tarde, em meio ao expediente, um sono cansado de quem não podia raciocinar com clareza, e isso o fazia voltar com frequência ao lavatório, por vezes entediado, outras vezes com a pressa de quem estivesse atrasado para alguma coisa, enquanto tornava a lavar e a lavar o rosto. Água nos pulsos. Nuca. Um colega agradeceu a Deus porque era sexta-feira.

No banho, em sua casa, repassou a aridez de sua vida diária. E do que passara a ser sua vida, desde os últimos meses, os dias que a compunham. Uma ou outra imagem sem força circulava entre seus olhos fechados, sob o chuveiro, como se ainda não lhe fosse permitido perder-se do passado. Também pouco o inspirava quanto ao futuro. Admitia sem resistências uma impressão amarga sobre o presente, o dia e outro, como se não bastasse o prolongamento de antigas angústias e estados de insegurança dos quais imaginara haver-se libertado.

Mentia a si mesmo, dizendo que achava extraordinário sentir os pés no chão, os pulmões se expandindo e se contraindo com o ar ambiente, qualquer que fosse, o sangue em plena circulação, mesmo que sempre esquecido, extraordinário saber que poderia levantar-se dali quando quisesse, comandando uma vontade invisível, antes de ser comandado por ela, mas, no fundo, justamente por cercar-se de tais singelas observações, tinha certeza de que não estava bem. E que essas pequenas coisas boas não passavam de mais uma confirmação de que não podia ver algo à frente, enfim, a constatação de que nada ia bem. Não havia futuro em ficar assistindo a si mesmo em meio aos gestos mais simples, admirando até mesmo contrações involuntárias, pois todo homem é feito para morrer, como uma casa um dia acaba demolida, sem que eventualmente interesse a alguém saber o que guardava entre seus cômodos.

Enquanto se vestia, mais uma vez lembrou-se de que nada era concreto. Os dias, o que poderia haver de mais etéreo? O dia que acabara de viver, não acabado ainda, as pessoas com quem estivera, os lugares e as circunstâncias, toda memória ia caindo lenta mas irresistivelmente ao passado, dia após dia. E, a cada dia, ele ia caindo também.

Os últimos dias de agosto – Guia de leitura

86. Pedras, cometas, fichas alucinantes – sequência

84. Não há linhas retas até Estela – anterior

Imagem: Alfie Scheinman. Multidão em rua de Liverpool.

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