Seu carrinho está vazio no momento!
Sonho do rio antigo
Concluindo por fim que o homem é o produto da natureza sobre si mesma. E a consciência, a ferramenta com que o universo procura interpretar-se.
“Vocês se parecem com Pablo e Cândido, mas acho que todos vocês se parecem, que são os verdadeiros donos das ruas, das cidades, do tempo.”
“Foi o que disse a eles?”
“Disse. Pensei.”
“Quase a mesma coisa.”
“Tanto que fico aqui com vocês, sentado na escada, enquanto todos dormem.”
“Todos dormem. Você também precisa dormir.”
“Sabe, Pablo, eu não queria lhe dizer… Mas é mais tarde do que você imagina.”
“Não sou o Pablo, lembra? E como sabe o que eu imagino?”
“Mas sabemos o que você imagina, Júlio. Bem agora, enquanto nos observa, está pensando na organização da matéria, apostando que a vida busca aperfeiçoar-se, tornar-se complexa, alcançar a consciência e o conhecimento. Concluindo, por fim, que o homem é o produto da natureza sobre si mesma. E a consciência, a ferramenta com que o universo procura interpretar-se.”
“Sim, é nisso que ele fica pensando, Cândido. É nisso, está vendo? Enquanto todos dormem.”
Volto a insistir nisto: eu e você temos a resposta. Somos a resposta. Quase definimos sua sombra. Mas como transcrevê-la em qualquer idioma? Como reduzi-la a palavras inteligíveis e convencionais? Denunciá-la? Com que meios? Para quem? Sim, a velha história da transformação pessoal, mas com que palavras? Com que outras palavras?
As águas turvas, de ruído semelhante a uma chuva longínqua, agora ainda mais irreconhecíveis, corriam na direção da mata fechada. Desde o início, eu admitia com naturalidade que o rapaz ao meu lado, de minha mesma idade, era meu conterrâneo, o que se havia afogado no rio. “Sempre pensei que essas águas corressem no sentido contrário”, eu lhe digo quase sem ênfase. “Você tinha razão”, ele responde. “No outro sentido, quero dizer. Não me lembro.” “Veja. Agora estão correndo de volta”, ele aponta. “Sim. É incrível”, murmuro com surdo estranhamento. “Não me lembro de alguma vez ter lido sobre isso, deve ser algum fenômeno novo.” “No entanto, é assim”, diz ele sem se alterar. “Não me lembro. Não sei. Acho que é assim.” Desvio os olhos do curso do rio, ao meu lado uma parede logo faz ver que estamos em outra parte, o que é a um só tempo um salão antigo e uma rua comercial, normalmente muito movimentada, agora deserta por artes da noite, rua de minha rotina e bastante conhecida, parte de meu caminho diário, algo como se a rua passasse por dentro do amplo salão ou fosse interrompida em determinado trecho por ele, suas altas paredes e teto inalcançável. Vejo que meu conterrâneo agora está mais atrás de outros, são quase estranhos para mim, não fosse por decisivos momentos serem o que são, e ali estão meu pai, Bruno, a jovem cujo rosto nunca antes eu vira, mas sabia associada ao viaduto de seu último dia, além de outros que penso jamais ter visto, mas que talvez conheça de alguma forma. À frente deles, mais próximo a mim, como liderando o grupo ou configurando o vértice de uma formação triangular, Coelho entrega-me um papel, uma carta. Espero que me diga algo. Mas ele apenas espera, como os demais. Rasgo um, dois, vários envelopes, com a angustiante sensação de que nunca chegarei à mensagem. Por fim, desdobro o papel ansiosamente, pondo-me a ler de imediato o que quer que se mostre nele. Não me lembro das primeiras linhas, do que acabo de ler, como se nada houvesse lido, e torno ao início. O texto agora parece ser outro, ainda incompreensível. Tenho certeza de que se trata de minha própria língua. “Palavras não inventadas, talvez”, digo eu como a desculpar-me envergonhado perante eles. O grupo permanece em silêncio. Os mortos observam-me, como ainda à espera do que tenho a dizer. Não percebem, talvez, minha agonia devida à impotência de minha visão. “A impotência de minha visão”, murmuro tolamente. Subitamente, os olhos deles tornam-se maiores, desfigurando-se como se mais inchassem e brilhassem, porém perdendo a forma original, tornando-se manchas impessoais. Agora tenho pressa em dizer-lhes o que leio e compreendo, mas já é tarde. E estou outra vez diante do rio, que agora corre por todas as ruas da cidade. Impossível dizer em que sentido.
Os últimos dias de agosto – Guia de leitura
84. Não há linhas retas até Estela – sequência
82. Os extremos do grande sonho – anterior
Imagem: Elaine de Kooning. Paisagem de inverno. 1966.
por
Publicado em
Categorias:
Tags:
Leia também:
Comentar