Seu carrinho está vazio no momento!
Os extremos do grande sonho
Tornava a sentir-se respirando e andando, mãos retesadas contra a naturalidade dos movimentos, sangue cegamente visitando cada porção do corpo, isso era viver, ruas e trânsito humano, reconhecendo a repetição de incontáveis situações diárias sobrepondo-se a um passado acumulado no irreal, no insólito, tempo entre nascimento e morte, o giro do planeta arrastando cadáveres, as reciclagens inevitáveis, respostas adiadas às perguntas esquecidas. Manhã.
Uma ambulância em alta velocidade, sirena irritante. Corre a salvar uma vida, pensam que podem salvá-la. Por enquanto, sim. Não um dia. Mas salvando-a agora, tornam a devolvê-la aos giros para que presencie, e pratique por sua vez, os mesmos gestos entre o dia e a noite. A faxineira, molhando a calçada, esguicho, vassoura, com um balde menor do que aquele em que trouxeram pedras da Lua, observa o distanciamento da ambulância, parecendo interessada. Júlio pensa dizer-lhe: “Não se incomode com isso. Eu e a senhora estamos salvos.”.
O ser humano ainda não descobriu sua posição no cosmo, continuava andando, e se recusa a admitir sua transitoriedade. Todos sempre muito ocupados com a sobrevivência, a saúde, o conforto, por isso nos afastamos das grandes causas… Mas veja quem está falando em grandes causas: dias atrás ingeria vitaminas sem nenhuma prescrição médica, ótimas para desaparecer. Outro cigarro. Outro grande impostor. Arauto das grandes conclusões, de inteligência média e lamentando havê-la desperdiçado entre remoinhos e cataclismos pessoais, sem contar o tempo que perdera nos estudos, culminando com a patética e pretensamente fatal Noite das Vitaminas.
Passou a referir-se secretamente a essa noite como Noite das Vitaminas, outra de suas vergonhosas manias, a de relacionar fatos pessoais de maneira a ridicularizar grandes rótulos e expressões históricas, assim como chamavam ao massacre dos protestantes Noite de São Bartolomeu ou ao desastroso desembarque aliado na Normandia, Dia D. A partir dessa noite, adquiriu a estranha impressão de que a sua loucura e a sua lucidez eram outras. As drogas, pensava. Culpava-as com uma vaga gratidão. Talvez houvessem lesado ou, contrariamente, ativado alguma substância em seu cérebro ou… Nada que merecesse considerações mais longas ou mais elucidativas, mas que, com certeza, franqueava-lhe agora deduções mais ágeis, lapsos de consciência e outros relâmpagos metafísicos. Resumia-se: assim como os físicos buscavam a unificação das leis que regem o universo, concluía que o sentido mais amplo da existência não podia estar dissociado de uma complexa e inumerável série de fatores, nada disso, bem entendido, revolvendo Freud, Adler, Ferenczi ou quaisquer outros cientistas da alma. Talvez fosse possível pressentir ainda uma pista mais segura para o segredo que perseguia, considerando-se que sua atividade mental vinha sendo movida a ideias e noções, após a Noite das Vitaminas, mais estimulantes, embora mais fugidias, mas com maior poder de abrir-lhe janelas para dentro, o que também associava ao sistema de reflexos recíprocos, espelho-mundo e seu inconsciente, ponte-espelho de seus olhos aos dias, dias-cidade ou quase tempo-espaço, que era como agora chamavam o universo os mamíferos metafísicos – ou prefeririam: espíritos de sangue quente? Tudo o que o cercava transcendia o tempo da vida humana (época, geração) e a morte, começando pela sua própria. Seu tempo. Sua morte. Também lhe parecia um segredo tão grande quanto o que maior pretendesse ser: a maneira como tais relâmpagos de intuição cristalizavam-se em sua mente. Para um único instante de brilho intenso, eram necessários infinitos dias e semanas. Às vezes, anos. Uma vida. Para muitos, nem uma vida era suficiente. O tempo podia ser a última chave. Sim, segurou o cigarro. Finalmente diante do que mais importava, o que a tudo abarcava e redimia, sem nunca dar mostras de sua real existência. Ei-lo, o Tempo.
Você pode imaginar. Isso durou pouco. Mas de fato me impressionou. Como tanta coisa antes, como sempre eu me impressionara com fetos e cadáveres, os extremos do grande sonho, o que fazia crer que eu sempre fora diferente das outras pessoas, das que raramente (ou nunca) dispensavam qualquer atenção a esse tipo de assunto, como se não fossem também elas, enquanto passavam distraídas, esses fetos e esses cadáveres, agentes do grande sonho. As que não sabiam o que eram hoje. Não reconheciam o feto. Não previam o cadáver.
Os últimos dias de agosto – Guia de leitura
83. Sonho do rio antigo – sequência
81. Música, ruídos: oásis e desertos – anterior
Imagem: Mstislav Dobuzhinsky. Rua dos Vidraceiros em Vilno. 1906.
por
Publicado em
Categorias:
Tags:
Leia também:
Comentar