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O rival de Churchill
Todos querem escrever alguma coisa, ninguém sabe por quê.
A… CRI… SE… DO… MU… MUN… DO. Muito bem. Titulo sem erros. Centralizado. Conta os toques da linha, subtrai cada letra e espaço do que haverá de ser escrito, divide por dois, conta de novo… Perfeito. A crise do mundo: uma série de comentários críticos (pois ele não gosta de chamá-los artigos), cuidadosamente datilografados, sobre o que mais preocupa a humanidade nos dias atuais – nos dias atuais dos pré-históricos anos 1970.
A cama é mais baixa do que a máquina, a cadeira é mais alta. Condições adversas. Mesmo assim, a felicidade. Nada se comparou, por muitos e muitos anos seguintes, à paixão que sentiu por essa máquina de escrever, por esse espaço desconfortável a um canto do quarto, nem mesmo pelos precários móveis que integram pateticamente o conjunto aconchegante de seu melhor mundo, esse armário capenga com a chave em falso e a sua escrivaninha inclinada de Pisa – que mais tarde descreverá em sua noveleta mais atrevida, A conspiração dos felizes.
Os vícios, a droga: aconselha a todos que se afastem dessas coisas desnecessárias. A guerra, os conflitos: afirma que tudo isso é melhor agora, que as guerras antigas foram muito piores, com espadas e lanças. A violência, os crimes: mais conselhos para que não façam mal aos seus semelhantes. Se todos lessem isso, esse compêndio de cuidadosas análises sobre tudo o que aflige o ser humano, que mundo reconfortante e magnífico teríamos pela frente! Quando publicado em livro, talvez seja disputado até pelos estadistas, que veriam aí um manual antimaquiavélico, servindo talvez a orientá-los no sentido de tomar decisões mais humanas no futuro. Só o que falta, como sempre, é a boa vontade alheia.
Sim, mas isso está mudando, ele percebe. Aliás, à parte essa mudança que se constata dia após dia, por melhores ou piores que sejam seus textos, ninguém poderá acusá-lo de não ter sido um homem de boa vontade. Mais do que isso: não é uma boa vontade aprendida na igreja. É a boa vontade legítima, interessada. A boa vontade ansiosa que move os indignados às ações de qualquer espécie, custando o preço de horas e horas de sua própria vida nesse canto da casa, sob luz anêmica, forçando a vista, corrigindo tipos datilografados por engano, sorrindo em silêncio ao contemplar um texto terminado, sem erros, intacto.
Mas, falando em estadistas, ele descobre, tragicamente e por acaso, que um balofo inglês em preto e branco, chamado Winston Churchill, escreveu também um livro com o mesmo título. Em mais de um volume! Está certo que não é exatamente sobre os mesmos assuntos. Também que o título é A crise mundial, não A crise do mundo, vá lá. Mesmo assim, convenhamos, é coincidência demais. Não só isso: o estadista foi galardoado com o Nobel de Literatura. E nem era escritor! Mas como é possível um cara escrever tantas páginas em meio a uma guerra, com tanta desgraça ao redor e tantas urgências e tanta coisa mais para fazer? E esse rapazinho determinado, com sua implacável máquina de escrever, mesmo estudando meio período, com a tarde livre, demora a redigir um parágrafo inteiro, por vezes mesmo algumas poucas linhas. E um cínico, com um charuto pendurado na boca, brinda o mundo com calhamaços de textos em inglês, A crise mundial, vejam só. Mas Churchill tem a vantagem do tempo. Está no passado. Já fez tudo isso. Era rico e podia ditar suas ideias a algum assistente, alguma secretária. Mas ele não, que dita tudo a si mesmo, praticamente falando sozinho. Não tem dinheiro. Nem muito mais do que essa sua conhecida boa vontade. E ela não vem se mostrando suficiente, não mais. Encontra-se abatido, cansado. Já escreveu mais de dez páginas, sendo cada artigo, muito sofridamente, uma página apenas. Mas como pode um menino de treze anos saber sobre os efeitos do tabagismo e discutir situações no Oriente Médio? Sua fonte: a televisão.
Isso não irá durar muito. O mais atraente é escrever ficção. Todos gostam mais do que dessas notícias ruins sobre os conflitos do mundo. Mãos à máquina. O herói é sempre solteiro – como pode um herói ser casado, onde se viu isso? Tem que tratar sua namorada ou alguma pretendente com naturalidade, dando a entender que não precisa delas, enquanto elas, sim, mostram-se sempre dispostas a tolerar suas manias, suas depressões e surtos de bom humor que as envergonham em público. Sim, ótimos contos.
Reúne-se com amigos da mesma laia: todos querem escrever alguma coisa, ninguém sabe por quê. Então mentem uns aos outros dizendo que é para ajudar as pessoas a se conscientizarem e assim salvar a humanidade – também não sabem do quê, salvar a humanidade do quê, ninguém perguntou isso ainda, depois a gente pensa. Todos eles pretendem evangelizar o mundo. Fosse como fosse. Boca a boca, passo a passo. Seria a solução para as guerras e para todos os males, provocados pela falta de conhecimento da palavra do Cordeiro. Cada um escreve pelo menos um conto envolvendo o arquetípico personagem incrédulo que subitamente toma consciência do amor divino e se emociona consigo mesmo, o que transforma sua vida para sempre. Como resistir? Essa historinha das pegadas na areia tira o sono de todos eles. “Rapaz, eu é que queria ter escrito isso! Incrível!”
Só uns meses, tudo está mudado. Incrível. Difícil de se crer. Agora, é preciso que todos leiam Fernando Pessoa. Como alguém pode não ter lido esse cara ainda? Absurdo um poeta desses ser esquecido assim. Divulgá-lo a todos, tanto quanto possível. Mostram versos dele às suas amigas viciadas em horóscopos. Não, não produzem muito efeito, a não ser o comentário de que isso tudo é meio triste. Elas esperavam outra coisa, já que os rapazes glorificam tanto o bardo-filósofo português. De resto, mal o entendem. O dominó que vesti estava errado… E daí? E daí?! Como assim: e daí? Eles ficam putos.
Paralelamente, quem foi que ouviu com atenção aquela dos Beatles? Não, com certeza não é desse disco não, é do outro – e isso gera uma celeuma até que mais de um confirme a faixa do disco a que pertence a canção mágica, assim vencendo por maioria. Mais populares que Jesus Cristo, lembram? Ainda são. Mas eles acreditam em Deus sim, tenho certeza. Lennon declarou-se ateu muitas vezes, mas no fundo, no fundo, um pacifista como ele, não acham?
Em menos de um ano, são todos ateus. Os termômetros para cada fase são:
“Não há um só dia em que não penso nele.” (Jesus, o nazareno)
“Acordo com aqueles versos na cabeça.” (Fernandinho, o português)
“Não, fala a verdade, ninguém mais fez o que eles fizeram.” (The Beatles, os britânicos)
O valor e a relevância das coisas baseiam-se na frequência com que elas ocupam suas mentes de segunda a domingo.
“Aquela japonesa escrota vai pagar no Inferno pela separação dos Beatles.”
“Não foi ela, coitada.”
“Foi sim.”
“Eles já estavam acabados, esgotados, arrebentados. Não tinha jeito.”
“Isso vai acontecer com a gente também. Um dia, a separação. Vai vendo.”
“E sem a gente ter feito nada, imagine.”
“Temos que trabalhar, fazer o quê? E ninguém toca nada aqui mesmo.”
Mais tarde, ouvem de um novo colega de turma que há outros lances, coisa pesada e influência soul, e que os Beatles não eram tudo. Como? Entreolham-se, amarelos. “Os Beatles são netos de negros”, declara Ernesto Sabato. Mal conseguem dormir nessa noite. Discutem o delicado assunto no dia seguinte. Mas sem conclusões precipitadas. Um pouco abatidos, sem dúvida, e fraternos como nunca. Isso parece ser um sinal de amadurecimento. Mas não propriamente a fraternidade: a descoberta de que os Beatles não eram tudo.
Marcas de gentis predadores – Guia de leitura
10. Fria manhã dos que se procuram – sequência
8. Outra das mil noites – anterior
Imagem: Wassily Kandinsky. Quarto na Rua Aintmiller. 1909.
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