Office in a Small City por Edward Hopper

O rival de Churchill

Reúne-se com amigos da mesma laia.
Todos querem escrever alguma coisa, ninguém sabe por quê.

Wassily Kandinsky. Quarto na rua Aintmiller. 1909

A CRI… SE… DO… MU… MUN… DO. Muito bem. Titulo sem erros. Centralizado. Conta os toques da linha, subtrai cada letra e espaço do que haverá de ser escrito, divide por dois, conta de novo… Perfeito. A crise do mundo: uma série de comentários críticos (pois ele não gosta de chamá-los artigos), cuidadosamente datilografados, sobre o que mais preocupa a humanidade nos dias atuais – nos dias atuais dos pré-históricos anos 1970.

A cama é mais baixa do que a máquina, a cadeira é mais alta. Condições adversas. Mesmo assim, a felicidade. Nada se comparou, por muitos e muitos anos seguintes, à paixão que sentiu por essa máquina de escrever, por esse espaço desconfortável a um canto do quarto, nem mesmo pelos precários móveis que integram pateticamente o conjunto aconchegante de seu melhor mundo, esse armário capenga com a chave em falso e a sua escrivaninha inclinada de Pisa – que mais tarde descreverá em sua noveleta mais atrevida, A conspiração dos felizes.

Os vícios, a droga: aconselha a todos que se afastem dessas coisas desnecessárias. A guerra, os conflitos: afirma que tudo isso é melhor agora, que as guerras antigas foram muito piores, com espadas e lanças. A violência, os crimes: mais conselhos para que não façam mal aos seus semelhantes. Se todos lessem isso, esse compêndio de cuidadosas análises sobre tudo o que aflige o ser humano, que mundo reconfortante e magnífico teríamos pela frente! Quando publicado em livro, talvez seja disputado até pelos estadistas, que veriam aí um manual antimaquiavélico, servindo talvez a orientá-los no sentido de tomar decisões mais humanas no futuro. Só o que falta, como sempre, é a boa vontade alheia.

Sim, mas isso está mudando, ele percebe. Aliás, à parte essa mudança que se constata dia após dia, por melhores ou piores que sejam seus textos, ninguém poderá acusá-lo de não ter sido um homem de boa vontade. Mais do que isso: não é uma boa vontade aprendida na igreja. É a boa vontade legítima, interessada. A boa vontade ansiosa que move os indignados às ações de qualquer espécie, custando o preço de horas e horas de sua própria vida nesse canto da casa, sob luz anêmica, forçando a vista, corrigindo tipos datilografados por engano, sorrindo em silêncio ao contemplar um texto terminado, sem erros, intacto.

Mas, falando em estadistas, ele descobre, tragicamente e por acaso, que um balofo inglês em preto e branco, chamado Winston Churchill, escreveu também um livro com o mesmo título. Em mais de um volume! Está certo que não é exatamente sobre os mesmos assuntos. Também que o título é A crise mundial, não A crise do mundo, vá lá. Mesmo assim, convenhamos, é coincidência demais. Não só isso: o estadista foi galardoado com o Nobel de Literatura. E nem era escritor! Mas como é possível um cara escrever tantas páginas em meio a uma guerra, com tanta desgraça ao redor e tantas urgências e tanta coisa mais para fazer? E esse rapazinho determinado, com sua implacável máquina de escrever, mesmo estudando meio período, com a tarde livre, demora a redigir um parágrafo inteiro, por vezes mesmo algumas poucas linhas. E um cínico, com um charuto pendurado na boca, brinda o mundo com calhamaços de textos em inglês, A crise mundial, vejam só. Mas Churchill tem a vantagem do tempo. Está no passado. Já fez tudo isso. Era rico e podia ditar suas ideias a algum assistente, alguma secretária. Mas ele não, que dita tudo a si mesmo, praticamente falando sozinho. Não tem dinheiro. Nem muito mais do que essa sua conhecida boa vontade. E ela não vem se mostrando suficiente, não mais. Encontra-se abatido, cansado. Já escreveu mais de dez páginas, sendo cada artigo, muito sofridamente, uma página apenas. Mas como pode um menino de treze anos saber sobre os efeitos do tabagismo e discutir situações no Oriente Médio? Sua fonte: a televisão.

Isso não irá durar muito. O mais atraente é escrever ficção. Todos gostam mais do que dessas notícias ruins sobre os conflitos do mundo. Mãos à máquina. O herói é sempre solteiro – como pode um herói ser casado, onde se viu isso? Tem que tratar sua namorada ou alguma pretendente com naturalidade, dando a entender que não precisa delas, enquanto elas, sim, mostram-se sempre dispostas a tolerar suas manias, suas depressões e surtos de bom humor que as envergonham em público. Sim, ótimos contos.

Reúne-se com amigos da mesma laia: todos querem escrever alguma coisa, ninguém sabe por quê. Então mentem uns aos outros dizendo que é para ajudar as pessoas a se conscientizarem e assim salvar a humanidade – também não sabem do quê, salvar a humanidade do quê, ninguém perguntou isso ainda, depois a gente pensa. Todos eles pretendem evangelizar o mundo. Fosse como fosse. Boca a boca, passo a passo. Seria a solução para as guerras e para todos os males, provocados pela falta de conhecimento da palavra do Cordeiro. Cada um escreve pelo menos um conto envolvendo o arquetípico personagem incrédulo que subitamente toma consciência do amor divino e se emociona consigo mesmo, o que transforma sua vida para sempre. Como resistir? Essa historinha das pegadas na areia tira o sono de todos eles. “Rapaz, eu é que queria ter escrito isso! Incrível!”

Só uns meses, tudo está mudado. Incrível. Difícil de se crer. Agora, é preciso que todos leiam Fernando Pessoa. Como alguém pode não ter lido esse cara ainda? Absurdo um poeta desses ser esquecido assim. Divulgá-lo a todos, tanto quanto possível. Mostram versos dele às suas amigas viciadas em horóscopos. Não, não produzem muito efeito, a não ser o comentário de que isso tudo é meio triste. Elas esperavam outra coisa, já que os rapazes glorificam tanto o bardo-filósofo português. De resto, mal o entendem. O dominó que vesti estava errado… E daí? E daí?! Como assim: e daí? Eles ficam putos.

Paralelamente, quem foi que ouviu com atenção aquela dos Beatles? Não, com certeza não é desse disco não, é do outro – e isso gera uma celeuma até que mais de um confirme a faixa do disco a que pertence a canção mágica, assim vencendo por maioria. Mais populares que Jesus Cristo, lembram? Ainda são. Mas eles acreditam em Deus sim, tenho certeza. Lennon declarou-se ateu muitas vezes, mas no fundo, no fundo, um pacifista como ele, não acham?

Em menos de um ano, são todos ateus. Os termômetros para cada fase são:

“Não há um só dia em que não penso nele.” (Jesus, o nazareno)

“Acordo com aqueles versos na cabeça.” (Fernandinho, o português)

“Não, fala a verdade, ninguém mais fez o que eles fizeram.” (The Beatles, os britânicos)

O valor e a relevância das coisas baseiam-se na frequência com que elas ocupam suas mentes de segunda a domingo.

“Aquela japonesa escrota vai pagar no Inferno pela separação dos Beatles.”

“Não foi ela, coitada.”

“Foi sim.”

“Eles já estavam acabados, esgotados, arrebentados. Não tinha jeito.”

“Isso vai acontecer com a gente também. Um dia, a separação. Vai vendo.”

“E sem a gente ter feito nada, imagine.”

“Temos que trabalhar, fazer o quê? E ninguém toca nada aqui mesmo.”

Mais tarde, ouvem de um novo colega de turma que há outros lances, coisa pesada e influência soul, e que os Beatles não eram tudo. Como? Entreolham-se, amarelos. “Os Beatles são netos de negros”, declara Ernesto Sabato. Mal conseguem dormir nessa noite. Discutem o delicado assunto no dia seguinte. Mas sem conclusões precipitadas. Um pouco abatidos, sem dúvida, e fraternos como nunca. Isso parece ser um sinal de amadurecimento. Mas não propriamente a fraternidade: a descoberta de que os Beatles não eram tudo.

Marcas de gentis predadores – Guia de leitura

 10. Fria manhã dos que se procuram – sequência

8. Outra das mil noites – anterior

Imagem: Wassily Kandinsky. Quarto na Rua Aintmiller. 1909.

Leia também:

Comentários

Comentar