Office in a Small City por Edward Hopper

Música, ruídos: oásis e desertos

Em contrapartida às considerações abrangentes, amplas, exteriores, opunha-se talvez uma certa necessidade de voltar-se ao centro, à unidade, que era de onde partia qualquer ideia do mundo.

Fiona Rae. Sem título. 1996Bar do Tomás, depois o Oásis. Como sempre. Cerveja. Vodca. Rostos e corpos, mulheres ainda atraíam seus olhos, obscuramente. Música, breves sinais de bem-estar, mesmo assim sem o entusiasmo das noites de verão. Tornou a pensar que não estaria naqueles bares. Que estaria morto. Vozes mais próximas, ruídos humanos que agora menos lhe interessavam, embora mal ouvisse o que diziam os outros. No Oásis, nunca havia nada de interessante. Como sempre.

Em outra mesa, uma garota perscrutava os homens presentes, como se caçasse. Se Bruno estivesse ali, já se teriam fisgado. Bruno desejava a vida. Morto tão repentinamente, enquanto a vida que ele parecia amar prosseguia entre olhares e ritmos, pairando enfumaçada em lugares assim, herança a estranhos homens enfraquecidos como Júlio. Havia muitos Oásis pelo mundo. Não raro, mais desertos que os próprios desertos. Perto do cantor, o simpático negro de dentes grandes e sorriso fácil, numa banqueta própria ao percussionista, acompanhava o ritmo da música com um movimento de corpo e batendo palmas. Olhos fechados, parecia em transe. Não precisava senão de alguns momentos assim, e os procurava, para continuar vivendo. Pequenos prazeres compensavam os dias. E por que não? Também perto do palco, uma garota dançava ativamente e como parte da música, desenhada em roupas escuras, justas, sapatos de salto e adereços oscilantes. Seu corpo em movimento, a própria materialização dos ritmos mais alegres, ela viva entre luz e fumaça. Cantava, e não se ouvia sua voz. Viu que Júlio a observava, sorriu para ele. Júlio desviou-se, deitou o resto de vodca sangue adentro. Ao garçom, outra dose. Outra vez pensou em Bruno. Tinha a impressão de que ele teria tido mais sorte e saído na frente. Vontade de segui-lo, mas não por ele. Não por alguma coisa. Vontade de também chegar. Não a alguma coisa. Trocaria de lugar com ele, se possível, Bruno merecia estar ali – outra ideia ridícula. Júlio assistia à sensualidade dessa que ilustrava com o corpo os ritmos crescentes, uma dessas mulheres com pouco a dizer e muito que atuar, que tanto atraíam o amigo e que hoje, para ele, nada mais podiam significar. Um rapaz passava entre as mesas. Tinha um nariz enorme e horrendo. Devia ter sido triste para ele, uma vida inteira com aquele nariz. E afinal estava ali: e sorria. Uma criança infeliz, um adolescente humilhado e quem sabe o quanto sofreria agora? Ainda assim, seu nariz parecia menor e menos horrendo que a estranha intuição – assim lhe ocorrera chamar naquele momento – com que Júlio instintivamente farejava o mundo. Com bem menos do que isso, pensou, escrevem-se livros exemplares com lições positivas de força de vontade e receitas de bolo. Uma vida arruinada. Por um nariz.

Na verdade, as coisas estavam se tornando ridículas para mim. Aquele nariz (ou um certo par de orelhas ou uma dentição qualquer) fazia parte de minhas próprias características e distorções, o fracasso de minha busca e de minhas esperanças na beleza. Era isso o que de fato eu buscava? Não, prometo não tornar a esse assunto, está bem?

A garota ainda dançava e sorria. Outros, vozes. Quantas bocas e olhos, sede e fome. O nariz que sorria era apenas um. A espécie humana existia com mais força, e todos estavam ali para provar isso. Mas voltava-lhe a imagem no espelho, olhos, nariz, boca e tudo o que formava o rosto exclusivo que, apesar de semelhante a infinitos outros, era o seu. Em contrapartida às considerações abrangentes, amplas, exteriores, opunha-se talvez uma certa necessidade de voltar-se ao centro, à unidade, que era de onde partia qualquer ideia do mundo, o que reagiria por certo com cada outra unidade, ocorria-lhe sem que isso o animasse, obviamente. Outros milhões assim. Morreriam todos. E outros milhões de olhos e narizes e bocas continuariam atravessando o tempo, nascendo e morrendo, nutrindo-se em vão nos espelhos terrestres. Alguém pedia outra canção. Todos acompanhavam o novo ritmo. O percussionista ali, contente em sua banqueta. Música e vida em tantos lugares. Ruídos de tudo. Em tantos lugares.

Coelho, Bruno e eu: não é justo. Três mortos na mesma história – e em tão pouco tempo! Rostos reais ou sistemas de alter egos, vamos, não se prenda a isso. Mas entenda-me como quiser. Dona Norma, Pablo, Cândido… É natural que queira saber. Os personagens desaparecem, ausentam-se da narrativa. Pior, como você diz: alguns deles nem (ou mal) tinham por que aparecer. Saem em seguida. Ressurgem sem nenhum critério. Que vergonha. Do que mesmo falávamos?

Os últimos dias de agosto – Guia de leitura

82. Os extremos do grande sonho – sequência

80. O que restou de sua grande e última decisão – anterior

Imagem: Fiona Rae. Sem título. 1996.

por

Publicado em

Leia também:

Comentários

Comentar