Office in a Small City por Edward Hopper

Um título para isto

Sempre essa miserável necessidade de ser amado por desconhecidos.
Por uma legião de fantasmas que o julgam.

Leonid Osipovich Pasternak. Os tormentos do processo criativo.O livro foi parar numas poucas livrarias, dois ou três exemplares em cada uma. São pontos de venda modestos, mal situados, pouco visitados, e A canção de pedra não se encontra exposta em nenhuma das vitrines, como o autor teve o anônimo cuidado de conferir. Em um desses pontos, por exemplo, a estreita lombada cor de fogo se avista de longe, mas se encontra, para não dizer se perde, em uma estante alta, uma quina lá do fundo, impossível alcançá-lo sem uma escada doméstica, pelo menos. (Não pode negar que a obra está lá, e que o velho editor cumpriu sua parte. Vamos ser justos.) O resto permanece na editora, isto é, dentro da dolorosa caixa de papelão. Mas, como foi combinado, caso as vendas disparem, eles reforçam o estoque e redigem um novo contrato, sem nenhum problema.

As livrarias exercem ainda um efeito sombrio sobre o dedicado contista, efeito que se acrescenta à situação presente: a sufocante impressão de que são livros demais, histórias demais, autores demais – e sobre quais deles se pode afirmar que são de fato necessários? Os mais novos? Os mais velhos? Os prêmio Nobel? Estantes cada vez mais altas. Títulos substituindo-se com agilidade nos catálogos. A produção toda envelhece logo, demanda um trabalho industrial constante e crescente, abastecendo os consumidores com qualquer bobagem, desde que ela confirme suas crenças e os conserve felizes.

Recorda com sutil amargura a manhã em que subia a Rua Rocha, carregando sua preciosa caixa de livros, recusando-se (por pouco e por enquanto) a se sentir um palerma completo, ator de uma situação que, em princípio, gostaríamos que todos vissem, por seu aspecto heroico; que depois gostaríamos que ninguém nunca visse, por seu aspecto ridículo. No fim, gostaríamos que nem tivesse acontecido, e a isso chamamos arrependimento.

Um arrependimento quase imediato, não desses que só serão revistos em fases futuras de sua própria vida, mas que se manifesta agora, bem agora, com uma intensidade que o surpreende. Sua alma sofre com essa precipitação de ideias e sentimentos que parecem se deslocar por toda parte dentro de seu cérebro, como se dá com os átomos de um gás superaquecido, que se chocam por toda parte dentro de um recipiente fechado. Ele se sente em um recipiente fechado. Um pouco tonto. Sem conexão com todos os livros que o olham das estantes, sem conexão com os procedimentos editoriais, com seus próprios textos, subitamente distorcidos, como em imagens de sonho, com os fantasmas de leitores que, também num momento, debandaram para algum castelo distante. Não é possível que tenha mudado de ideia (ou de sentimento, vá lá, palavra que ele ainda aprecia revisitar) tão rápido. Se tivesse esperado um pouco, só um pouco mais, teria economizado esse dinheiro da produção do livro. O dinheiro, sim, é algo que realmente o faz sofrer.

Mas, para um escritor, nada se perde – pelo menos, é o que ele se inventa. Deixe estar, que essa caixa pesada e todo esse histórico de esforços inúteis, tudo vai desaparecer um dia, enquanto, por outro lado, vai fazer parte de outro texto, de sua pequena aventura como pretenso escritor, de suas memórias individuais e intransferíveis; e as pessoas que por acaso acharem tudo aquilo ridículo e digno de sarcasmo talvez não tenham vivido, por si mesmas, nada parecido com aquele dia cheio de bravura, movido por um entusiasmo glorioso. Por isso, também, tudo vale a pena, porque uns falam pelos outros. Porque o único jeito de salvar o mundo é registrá-lo.

À noite, mesmo cansado, ele relê, linha após linha, parágrafo após parágrafo, cada um de seus contos. O personagem de Dickens questionava se seria ele o herói de sua própria vida. E o jovem contista suburbano pensa que deve fazer-se essa mesma pergunta hoje – aliás, com urgência. Não sabe por que faz isso, por que se dedica a uma releitura tão detalhada, com tanto empenho, bem agora que seus livros vão começar a se espalhar pelo mundo. Quem mandou? Amargamente, passa a encontrar uns erros da tipografia, palavras cortadas ao meio, hifenizadas em si mesmas (me-nino), maiúsculas acidentais, uma linha inteira omitida entre uma página e a seguinte, e outros sofrimentos que ele não pode atribuir a ninguém, pois se referem, estes, a concordâncias mal elaboradas e vocabulário inadequado – termos duvidosos que, revistos com alguma esperança em um dicionário, infelizmente se confirmam, de uma vez e para sempre, fora de contexto.

“Puta…!”, ele geme, arranhando-se o rosto de alto a baixo.

Mas não pode atormentar-se assim, isso não é tão grave, ele entende. Na próxima edição ele os corrigirá, afinal são poucos, considerando-se ser um livro de 125 páginas, não é mesmo? O problema é que ele imagina, no texto, novos períodos inteiros substituindo os anteriores. Palavras reproduzindo-se ou encolhendo, como uma fauna readaptando-se a determinado hábitat. Em poucos dias, as ideias que estruturavam as narrativas parecem-lhe fracas. Ou insuficientes. Ou exageradas. Ou gratuitamente sentimentais. Ou desnecessariamente trágicas. Os olhos irritam-se sob a luz artificial. O cansaço o faz desistir de tudo, para depois retomar esse mesmo procedimento de formiga operária na noite seguinte. Linha após linha. Cuidadosamente. Mais algum erro? Não, quase não… Outro! Filha da puta…

Passa em frente a uma das livrarias, sem desviar-se do caminho para o trabalho. Poderia comprar de volta esses exemplares, que tal? Sim, uma ideia maquiavélica. (Ideias nunca lhe faltam; o que lhe falta é bom senso, como se vê.) Perderá algum dinheiro. Mas passará a impressão de que o livro está sendo procurado. Assim, ele os retiraria, pouco a pouco, daquelas prateleiras, antes que alguém mais os encontre e… Mão na testa, parado na calçada em meio aos passantes, surpreende-se com tais obscuras decisões. De que terá servido, então, todo o processo de consignação dos livros? – se ele próprio os quer de volta, para corrigi-los, para não se envergonhar publicamente de algum amadorismo que, por esses dias, não está mais disposto a perdoar em si mesmo.

Caminhando, mesmo em meio ao centro urbano, é que lhe ocorrem as melhores ideias, vamos chamar assim. Um processo que, nos últimos meses, lhe franqueou a montagem desse seu primeiro livro, nascido mágico, portanto… Portanto, já prepara mentalmente um posfácio à próxima edição (próxima edição!), em que tentará remediar algumas precariedades já impressas. Lá vem, enquanto desvia-se de alguém que corre para não perder o ônibus: Este é o pior livro que escrevi. (É o único até então, mas ele imagina, claro, o tal posfácio sendo lido no futuro, por estudiosos de sua obra completa.) Infelizmente, a miopia de meus vinte anos entusiasmou-me a publicá-lo. E agora, como se vê, é tarde. Contos enfadonhos, ingênuos e dispensáveis são frutos de uma fase difícil, conflitante e mal orientada de minha imaturidade. (Ah, que coragem, isso sim é que é maturidade!) “Diversos caminhos do asfalto” pretendia ser uma fábula social e acabou como uma fantasia comovente e patética. O idealista Gino, outro filhote de Andersen, é admirável por sua determinação, mas, infelizmente, não sabe por quem se sacrifica e enfim busca um mundo inverossímil, por não saber adaptar-se ao seu próprio nem conquistar-se a si mesmo. (Hum, agora sim! Explicado. Depois dessa, dane-se o Gino. Não pensar mais nele.) “Lauro e o monstro” deveria ser apenas uma peça de cenários oníricos, sem mais pretensões. Não sei por que me perdi. “Um amigo” é acusado, com razão, de plagiar o principezinho de Saint-Exupéry. “A canção de pedra” deve ter irritado as feministas, que haverão de criticar-me pela submissão de Sibelle, não sem motivo. Na época em que a concebi, tinha ainda uma visão doméstica e limitada do mundo. Sobre a eternidade almejada, trata-se realmente de um dilema intransponível. (Oh, sim! Muitas feministas leram o conto e ficaram muito, muito irritadas, indignaram-se com Sibelle: a personagem agora é o estopim de uma bomba, e várias manifestações estão sendo preparadas em praça pública, mas isso se todos puderem milagrosamente voltar aos anos 1960.) “Sonhos alados” é um dos contos de que mais me arrependo. Não acredito que a liberdade seja apenas interior, é ridículo. A pomba que conduz os voos do pobre canário é uma criatura ingênua que tagarela docemente uma sequência de belas bobagens. “Viagens” divide com “Sonhos alados” minha aversão. As respostas finais para os motivos da existência (além de outros pontos) são de uma infantilidade afetada. “A grande árvore da vida” deveria terminar diante da porta de arco com a última inscrição. Alguns dirão que o conto não teria sentido se terminasse simplesmente assim, sob o peso das palavras na porta. Mas nisso consistiria a inovação (cuja oportunidade perdi): copiar exatamente o real. Talvez algo possa ser aproveitado do diálogo entre os lagartos.

Que humilde. Ficou muito bom, rapaz. Algum formalismo de Borges, tudo sempre cheirando a plágio e a trajes empoeirados, emprestados do armário das solenidades, mas… Não está mau, reconheça. Claramente defensivo, e daí? Sempre tentando agradar a todos, sim senhor, eu que agradeço, conte comigo, sempre tentando desculpar-se, ser visto com bons olhos, sempre essa miserável necessidade de ser amado por desconhecidos, por uma legião de fantasmas que o julgam, além do veneno gosmento dessa reciclada culpa judaico-cristã, de que só aparentemente alguns de nós terão se libertado.

Claro que isso tudo foi terminado depois, passado a limpo, relido e revisado, agora cuidadosamente mesmo! Não pode, depois, arrepender-se do posfácio também, será o desastre, será o fim! E parece que esse pequeno texto elucidativo, sutilmente tentando escapar da culpa, de certa forma apresenta-se mais interessante do que o próprio livro, veja só. Um sinal, mesmo que remoto, de alguma evolução? Tudo indica que sim, rapaz, vamos pensar assim, certo? (Lembra-se de trailers que sugerem filmes eletrizantes, mas que sempre decepcionam os que acreditam nessa boa propaganda.)

Não está mau, admita. Agora precisamos de tempo para ver sair essa nova edição, para semear seu próprio perdão no futuro, enquanto digerimos, sem risco de enlouquecer ou de reconsiderar atos heroicos de suicídio, todo esse silencioso, subterrâneo, desagradável, desastroso fracasso.

Marcas de gentis predadores – Guia de leitura

6. Uma das mil noites – sequência

4. De falsas princesas – anterior

Imagem: Leonid Osipovich Pasternak. Os tormentos do processo criativo. 1892.

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