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O otimismo dos honestos
Paralelamente, corria a suspeita de que os tais documentos não assinados referiam-se a uma mesma pessoa, usando nomes falsos, chegando a se supor que havia ali algum envolvimento de uma eventual amante do doutor Aguiar, usando nomes masculinos, precisamente com intenções escusas, chegando a se supor ainda, e acima disso, que o doutor Aguiar pudesse ter também um amante de seu mesmo sexo, qual o problema? – algo que, na opinião de Cândido Rosário Cruz e Clemente da Trindade, parecia incabível. Pelo sim, pelo não, a tentadora notícia circulava sem freios. Pelo sim, pelo não, a tentadora notícia circulava sem freios. Do andar de cima ao andar de baixo. Do almoxarifado infestado de ácaros à saletinha asséptica da fiel assistente do alvo das fofocas. Tanto que um dos nossos passou-a ao rapaz de entregas, que, por sua vez, comentou com a copeira, que fez saber à moça da faxina, que acabou perguntando sobre isso ao Heitor Expedito, que foi quem julgou de bom senso, dada a dimensão dos rumores, levar tudo ao doutor Aguiar, que prometeu demissão imediata ao primeiro que voltasse a tocar no assunto.
O boato sobre a/o amante do doutor Aguiar, juntamente com os/as possíveis clientes envolvidos(as) nas supostas fraudes, já havia chegado ao Iraque.
“Sabe, Cândido… Esse caso da amante do doutor Aguiar…”
“Não brinca! Você também está metido nessa?”
“Como?”
“Esse negócio está cada vez mais…”
“Não estou metido em nada, que isso! Nem sei direito do que se trata.”
“O que é, então? Pode me contar?”
“Quer parar com toda essa ansiedade? Ninguém sabe se isso tudo é verdade ou não.”
“Ora, como não?”
“Tudo bem, mas não fui eu quem levantou a suspeita, certo? Eu ia justamente dizer que não vale a pena todos nós ficarmos o dia todo mexericando sobre uma coisa tão idiota. Mas que merda!”
“Só isso?”, disse Cândido, desapontado.
Na mesma semana, o doutor Aguiar foi entrevistado por uma emissora de TV. Com certeza, faziam parte de seus contatos oportunidades desse gênero, em que se pagava algo para que a rede lhe abrisse espaço, melhor seria dizer tempo, agora é tarde, e onde se pudesse divulgar o nome da Leôncio & Barradas Advocacia Ltda., que, apesar de parecer muito importante à maioria dos escravos, dela quase ninguém, além dos clientes, ouvira falar, pois, que soubéssemos, ela jamais houvera sido citada em qualquer escândalo financeiro, como também nunca dera motivos à imprensa.
Vinheta estridente, efeitos de eco, imagens reluzindo e girando, sucedendo-se absurdamente umas sobre as outras, durante cansativos dez segundos, sons e imagens como próprias a irritar ao máximo o telespectador – mas claro que não era essa a intenção. Absolutamente impagável. Não, não: claro que isso não era o pior.
“Estamos aqui para uma rápida palavrinha com nosso entrevistado de hoje, que é um especialista em leis, particularmente centradas em aspectos econômicos (nome completo do doutor Aguiar, salva de palmas). Doutor Aguiar, eu gostaria de saber como o senhor vê a questão dos investimentos estrangeiros, dos investimentos externos, que parecem ser uma forte tendência da próxima década.”
“Bem, Roberto. É preciso lembrar que sem o intercâmbio, sem o comércio internacional, ficaríamos isolados, como ficaram os países socialistas. Mas tenho esperanças de que um dia também eles se juntarão a nós, e aí, sim, não teremos mais fronteiras.”
“E o mundo será como um todo?”
“O mundo será como um todo.”
“O senhor parece ser bem otimista.”
“Bem, é preciso avançar sempre. Nunca deixar que o pessimismo tome conta de nossos horizontes. É preciso que cada um de nós faça sua parte, que cada um esteje consciente de seu papel na sociedade, para um dia podermos alcançarmos a plena cidadania.”
“Muito interessante. Paula, gostaria de perguntar alguma coisa ao nosso entrevistado?”
“Eu gostaria de saber como o senhor vê o crescimento notável de tantos casos de falcatruas e esquemas de corrupção, como vimos assistindo recentemente, inclusive alcançando altos escalões do poder público e mesmo com o envolvimento de grandes empresários, personalidades bem conhecidas de todos nós e até então acima de qualquer suspeita.”
“Bem, Paula. É preciso lembrar que isso não é um privilégio, digo, um problema apenas nosso. Veja o exemplo dos países socialistas, onde recentemente vieram à tona denúncias contra um dos ministros de Estado, isso, como vocês devem se lembrar, na União Soviética, não muito depois dum episódio semelhante na República Popular da China. Fora o que não ficamos sabendo.”
“Sim, mas quanto ao nosso país…”
“Bem, Paula (uma giradinha na cadeira), é preciso lembrar que nem tudo do que noticiam é verdade, a imprensa é muito instável, não se pode confiar em tudo que a mídia transmite.”
“Como?”
“E a Justiça está lá, funcionando sempre. Temos um Código Penal, agora também uma Constituição, uma carta soberana. A questão é levar a julgamento os verdadeiros corruptos, não só os bodes expiatórios, que são os usados apenas para que se encerre os casos. Mas, cá pra mim, tenho absoluta certeza que tudo isso está com os dias contados, por causa da evolução da consciência do nosso povo, que rejeita esses grandes esquemas desonestos, que os repudia (gesto com a mão fechada, enfático), e que haverá de se manifestar nas urnas, tanto quanto em outras próprias oportunidades.”
“Muito interessante. Como a Paula levantou, essa questão parece estar ganhando espaço na imprensa, com uma frequência nunca vista antes. Ao que o senhor atribui esse, digamos, crescimento? Ao fim do governo militar ou algo assim?”
“Bem, Roberto, é preciso lembrar que o regime militar não podia durar sempre. Agora, temos que conviver com a ausência de ordem, que talvez seje parte dessa transação, perdão (tosse rápida), digo, dessa transição. Mas, como eu já disse, não devemos ser pessimistas. Essas situações são esperadas num processo de redemocratização, que todos nós fazemos parte.”
“Muito interessante. E quanto a uma possível desmobilização, em maior escala, desses esquemas fraudulentos que parecem desafiar a Justiça, o Estado, o senhor vê alguma perspectiva para um futuro próximo?”
“Bem, Roberto, é preciso lembrar que as coisas já se encaminham nessa direção. Como eu já disse, é um trabalho de todos nós. Devo confessar que muitas vezes essas notícias chegaram a me desanimar, sim, cheguei mesmo a temer, temer muito, pelo futuro da nação. Mas logo me apeguei à certeza, que nunca me abandonou, que faremos deste o país do futuro, onde cada um esteje consciente da sua participação, onde poderão viverem melhor os nossos filhos e netos.”
“Muito interessante. Bem, obrigado por ter participado do nosso programa, uma boa noite e esperamos que o senhor consiga influenciar mais pessoas nesse caminho. Quer dizer algo antes de encerrarmos, Paula?”
“Eu só queria acrescentar que é muito bom saber que ainda há homens dignos neste país, onde há tanta corrupção e injustiça, porque afinal todos nós precisamos de um pouco de esperança, não é mesmo?”
“Bem, Paula, é como eu sempre digo, o que é um ser humano sem esperança, não é? Se não acreditarmos em Deus e em nosso próprio país, vamos acreditar no quê?”
“Ok, obrigado, Paula. Obrigado ao senhor e, mais uma vez, boa noite.”
“Boa noite, foi um prazer estarmos aqui.”
“Obrigado por sua audiência, a gente volta amanhã, se Deus quiser.”
“Boa noite e até amanhã. Esperamos você.”
A seta de Verena – Guia de leitura
56. Senhores de tudo (e agora abençoados) – sequência
54. Acesso irresistível – anterior
Imagem: Albrecht Dürer. Pai aos 70 anos. 1497.
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