Office in a Small City por Edward Hopper

O diário de um morto. 5

Estas mesmas ruas podem ter sido pântanos fabulosos onde os dinossauros ruminavam ervas.
Sempre o mesmo lugar. Quanto tempo?
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Página 81. Inseto e luminária, longa caminhada, pântanos com dinossauros.

Lia à luz da luminária quando um inseto minúsculo voejou rumo à lâmpada e caiu morto sobre o papel muito claro. Tendo diante de mim o frágil, pequeno cadáver, esse que, um instante atrás, era como eu, vivo, aconteceu-me entender que merecesse algo de meu silêncio. Tal como certa vez se dera comigo, viera um dia ao mundo. Horas atrás, minutos talvez. Percebera, à sua maneira, a realidade em redor, buscara a luz com irrefreável obstinação – ou instinto, que importa? – e a ela entregara-se inteiramente. Difere que ele foi mais rápido. Sua vida logo encontrou um sentido e um fim. Ou só um fim.

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Após uma longa caminhada sob o sol, avistei, com alívio indescritível, o prédio onde moro. No caminho, tinha a impressão de que nunca chegaria. Cheguei, entrei em casa exausto, deixei que meu corpo suado caísse sem defesa sobre a cama, eu arfando de cansaço: “Acabou.”. Pareceu-me, enquanto se instalava o sono, ter andado o dia todo, ter contado cada passo, tentando esquecê-lo. Talvez, ocorreu-me, sinta o mesmo quando minha vida chegar ao fim. A morte, a visão do prédio. Quando suspirar pela última vez, gostaria de me lembrar disso. Acabou.

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Estas mesmas ruas podem ter sido pântanos fabulosos, onde os dinossauros ruminavam ervas. Sempre o mesmo lugar. Quanto tempo? Duzentos milhões de anos, creio. Pouco menos. Ou trezentos. Cem. Não entendo do assunto. Deixo por noventa e nove, o que abre uma diferença de um milhão de anos. Milhões de anos. Claro, nunca pensamos muito bem no que isso significa. Difícil considerar tanto tempo acumulado. E os tais bichos habitaram a Terra durante uns cento e sessenta milhões de anos, acho – lá vou eu de novo, a embriaguez das grandes cifras. E sucumbiram, apesar de tudo, apesar de tanto tempo, o que me provoca uma agourenta impressão de fragilidade, muito mal associada à aparência dos sáurios mais robustos, dentre os mais poderosos. Nós, ainda tão jovens neste planeta, que garantias temos? E o que nos importa isso de permanecer milhões de anos, quem sabe… Os dinossauros – melhor dizendo, toda a fauna da época – foram talvez um primeiro ensaio da natureza. Se não o primeiro, um deles – houve outra grande extinção, creio, não sei se me importa saber. Nós, outra tentativa. Gente nascendo e morrendo ao longo dos grandes períodos históricos, tudo resumido após uns milhões de anos como uma tentativa. Palavras minhas, divagações sem propósito. Famílias, mães amamentando crias, filhos crescendo e lutando para viver, gerações atravessando o tempo inconcebível, para que um dia alguém se volte ao mundo, à humanidade de sua época, e diga: sobrevivemos, estamos aqui. Sinto-me pequeno, errando por estas ruas, pressinto um tempo passado em que eu ainda não existia, e a cidade, sem mim, já pulsava com todos os seus ritmos. Por outro lado, encanta-me constatar que tudo agora, ao meu redor, toda a gente formigando pelas ruas-pântanos, é o produto de uma evolução incansável e lenta, desde o surgimento dos primeiros símios. Ainda é pouco. Houve um dia o oceano primordial onde tudo começou. Ali, uns tais organismos começaram a dividir-se, duplicar-se… E onde viemos parar! Pensar que tudo começou com alguns átomos de matéria orgânica que… Ora, que tenho com isso? Por que não andar como os outros? Caminhar por uma certa cidade, depois de tudo se haver transformado tanto! Como se nunca antes algo houvesse acontecido, desde que descemos das árvores e nos vestimos. Pior é não vislumbrar uma finalidade para todo esse maravilhoso trabalho de evolução, um objetivo ao qual tudo se encaminhe, pois não se encaminha, ao que parece. Na verdade, toda essa gente não é mais necessária do que os gigantescos animais rastejando ou correndo, há tanto tempo. Uma coisa tão estranha quanto outra. Os tempos com paralelos, ambientes semelhantes, estações do ano… Sempre o mesmo lugar. Evoluímos, talvez. Encontramos nossa forma atual, nunca a definitiva. As feições do rosto e a forma do corpo humano, tal como o conhecemos, serão também a marca de um passado distante. Como será nosso rosto daqui a um milhão de anos? Orelhas desnecessárias, cabelos e barbas inúteis, narizes obsoletos… Isso me lembra de como ainda somos ridículos. E eu escrevendo, escrevendo…

Os últimos dias de agosto – Guia de leitura

78. O diário de um morto 6. Página 113. Cidades em ruínas, poetas mortos, tentativa obstinada – sequência

76. O diário de um morto 4. Página 63. Identidade provisória, enigmas decifrados, relógios imprecisos, a garota grega, um pensamento simples – anterior

Imagem: James Whistler. Lojas em Chelsea. 1880.

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