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Dos males, o verão. Parte 7
Estrela em meio ao caos
IV
Quinta foi talvez o dia mais quente de todos. Um inferno.
A primeira coisa que fiz, pela manhã, foi rasgar o papel com o verso sobre a morte ser um poço, desistindo de meu grande poema. Eu o havia esquecido ali em cima, completamente, nem pensava mais no assunto. Por um momento, imaginei o Cordeiro, vi sua cara feia. Ele, que costumava dizer-se um entusiasta do comércio livre, da democracia capitalista, gostaria que visse agora a miséria em que o nosso país foi lançado de uns anos para cá. Mas ele não vê, tenho certeza. Ou finge que não vê, para manter sua posição. Certa vez, defendia a liberdade de escolha, a lei da oferta e procura, quando eu lhe perguntei: “E a cocaína?”. Não me lembro ao certo do que respondeu, mas incluía estatísticas. Naquele dia, eu bocejava desde o período da manhã, e ele pareceu ofender-se. Não me importei, claro. Não queria mesmo ver sua cara por muito tempo. Assim como é fácil não tomar parte nas estatísticas, era também fácil olhar para ele sem ser ele.
Os grandes termômetros das esquinas confirmavam a alta da temperatura. E as ruas pareciam cada vez mais saturadas de ambulantes e desgraçados. Um cego vendedor de tapetes esbarrou-me desajeitadamente.
“Opa! Desculpa”, disse ele.
Quase tropecei em sua bengala. Desculpamo-nos ao mesmo tempo, e prosseguimos. Observei seus passos na multidão, vi como era difícil para ele carregar tantos tapetes ao ombro, tateando o chão com a ponta da bengala, e por causa disso ia esbarrando em todo mundo. Talvez eu nem o percebesse, não fosse o esbarrão. Sua figura vagarosa e propensa a encontrões desastrados fazia-me ver outra perspectiva de meu futuro: vendedor de tapetes. Não, não pode ser! Estou transtornado. É apenas uma fase difícil de minha vida. Só o que eu tenho é fome.
Essa fome, eu a tentava esquecer à hora do almoço, sol a pino, meio-dia escaldante em que se podiam distinguir as ondulações do ar quente elevando-se do asfalto, a uma esquina de distância. O inferno, pensei. O verão do inferno.
Para passar o tempo, entrei numa pequena loja de discos, queria ouvir um pouco de música, qualquer música – logo que me tire da alma… Do outro lado da estante, a voz de um freguês irritado arruinou-me a magia daqueles breves momentos. Ele estava nervoso com a funcionária que o atendia, e falava sem parar ao dono da loja, enquanto um mulatinho assustado engolia em seco, retraindo-se atrás do balcão. Ele e a moça em apuros pareciam ser os dois únicos funcionários por ali. O dono era um homem de óculos, lentes esverdeadas de grossas, um ar severo e arrogante, lábios rígidos e pele desbotada. Repetiu ao freguês que ele tinha toda razão, mas o outro foi-se embora sem se acalmar. (Como observou um colega ainda hoje, parece que andam todos de mau humor ultimamente. Não é para menos: com esse calor…)
Porém, o caso não acabou aí. Assim que o freguês saiu, o homem pôs-se a ralhar com a garota em questão, mostrando-lhe uns olhos saltados que eu podia ver de onde estava, tendo-o de perfil. Quanto mais ele praguejava, mais o mulatinho se encolhia atrás do balcão. A funcionária tentava explicar-se, mas o patrão a atropelava com chavões repetitivos.
“O senhor tem que me ouvir!”
“Não interessa! Não interessa! Chega! Vou fazer suas contas!”
“Mas…”
“Não interessa! Chega!”
“O senhor tem que me dar outra chance…”
“Chega! Não interessa! E você? O que é que está olhando?”, disse ao mulatinho. “Anda, vai arrumar as estantes do fundo. Anda!”
Eu era o único freguês na loja, e nenhum deles parecia ter notado minha presença. A essa altura, senti que não poderia mais ficar indiferente. Além de ter sido grosseiro, o homem iria despachá-la sem mais nem menos, por um incidente sem importância. Por causa do alto índice de desemprego e da dificuldade em se conseguir trabalho, os patrões podem dar-se o luxo de demitir qualquer pessoa, por qualquer motivo, pois, no dia seguinte, têm outro candidato ajoelhado à porta. Os empregados, por sua vez, submetem-se a toda sorte de humilhações, pela mesma razão.
“Desculpe, senhor”, falei com firmeza. “Acho que o senhor está enganado. Eu vi tudo e posso…”
“O quê?!”, disse ele, tão surpreso quanto irritado com essa minha intromissão.
Vendo-o de frente, senti uma súbita aversão por sua aparência austera, os óculos pesados e os lábios arrogantes.
“Eu vi tudo”, menti. “Essa moça sempre me atendeu muito bem. Acho que o senhor…”
“Não interessa, não é só por isso”, ele respondeu, entre incomodado e impaciente. “Você não sabe de nada. Não conhece essa… essa…”
A garota, já com os nervos alterados, ficou vermelha à vista de todos nós, como se todo o sangue lhe subisse ao rosto. E saiu correndo para a rua, soluçando de vergonha.
“Essa… Essa…”
Entendi que não tinha mais nada a dizer ao homem da loja. Ele me analisava de alto a baixo, com uma espécie de curiosidade sarcástica.
“Bom, então eu… eu…”, gaguejei confuso.
Saí em seguida, sem olhar para trás. Ainda pude ver a moça por um instante, antes que dobrasse a esquina mais próxima, misturada a muitas outras pessoas. Segui em seu encalço, um pouco atordoado e hesitante. Logo que a identifiquei com certeza, fui tomado por um impulso inadiável: senti que precisava dizer-lhe qualquer coisa, falar com ela, e disparei a correr para alcançá-la. Ora, o que tenho eu com isso? O que estou fazendo afinal? Será que vou pedir desculpas a ela? Pelo quê? Só me faltava! Que verão desgraçado este!
“Moça!”
Quando me aproximei, ela se deteve e olhou-me de frente. Estava soluçando ainda. À luz intensa daquele sol, suas lágrimas cintilavam na base dos olhos. Via-se também o traço brilhante e úmido de uma lágrima que lhe havia dividido o rosto desde o canto do olho esquerdo até o lábio superior. Tinha uns lábios muito bonitos. E só então me dei conta de sua discreta beleza.
“Eu não queria que isso acontecesse. Sei que fui meio intrometido e…”
“Tudo bem”, disse ela, acalmando-se com um suspiro. “Não tem importância. Obrigada por tentar me ajudar.”
Sua pele era de um moreno natural, apesar do sol de janeiro. Via-se isso, a cor natural dessa bonita pele, por seu pescoço e pelo pouco mais que se mostrava num conjunto leve de verão, uma peça decotada cujas alças finas expunham seus ombros, saia branca e umas sandálias amarradas no tornozelo.
“Eu sei o que significa perder o emprego nos dias de hoje. Mas você vai conseguir coisa melhor, tenho certeza. Tenho certeza que…”
“Obrigada”, disse ela sem se animar muito.
Como eu não dissesse mais nada, ficamos em silêncio, com vergonha um do outro. De repente, como parte de certas atitudes que não posso explicar, senti um desejo extraordinário e urgente de voltar-me para qualquer lugar e desaparecer. Uma espécie de vazio apoderou-se de mim, como se eu me perguntasse, numa fração de segundo, o que tinha a ver com aquilo, o que estava fazendo ali e outras rápidas questões da mesma ordem. O que impedia que eu lhe virasse as costas, assim, sem mais nem menos? Um minuto depois, seguiria cada um seu caminho. E desapareceríamos, um para o outro. Mas, por um capricho qualquer de nossa curiosa raça, algo sempre nos obriga a encarar outra pessoa, desculparmo-nos perante ela, dando-lhe explicações para cada um de nossos movimentos. Talvez seja isso a fraternidade. E ficamos ali, numa situação constrangedora, tanto quanto ridícula.
“Obrigada”, ela repetiu, tão animada quanto antes. E afastou uns primeiros passos.
Senti uma estranha ternura por ela, e fui andando também, ao seu lado.
“Será que não posso ajudar você? Quem sabe se…”
“Tudo bem. Não precisa se preocupar comigo”, o ciclo de suspiros se esgotando.
“Se eu souber de alguma coisa…”
“Obrigada. Tudo bem.”
Compreendi que estava apaixonado. Sem dúvida. Do contrário, ela deixaria de me interessar, e eu não estaria insistindo em acompanhá-la. Apaixonado! À primeira vista e mesmo com fome. Não conseguia deixar de admirá-la, embora ela não o percebesse. E me voltava, em meio ao meu surto de fascínio, o velho Nietzsche outra vez: a estrela nascendo do caos, como claramente previsto por ele. Bem ali, à minha frente. Que linda.
“Quem sabe foi bom você ter saído de lá, não é? Aquele sujeito é um grosso e…”
Quando falei nele, senti que despertava seu ódio.
“Ah, aquele… Aquele…”, fez ela mordendo os lábios.
“Um cretino, não é? Um estúpido.”
“Aquele filho de uma puta! Viado!”
“Sem dúvida…”
A maneira subitamente vulgar como ela havia pronunciado essas palavras surpreendeu-me e quebrou um pouco de meu encanto. Mas a coitadinha estava nervosa, precisava extravasar de alguma forma. Então sugeri que nos sentássemos num banco de madeira ali perto, sob uma árvore, e ela concordou, para minha felicidade. Ficamos pelo menos meia hora conversando à sombra, e eu não me cansava de admirá-la. Ela contou sobre seu ex-patrão, de como explorava seus empregados, sem registrá-los devidamente, e das muitas horas extras que haviam ficado por receber. Depois falou dela, que era nascida no interior, morava com um tio, e dava duro para sobreviver e não sabia se voltava a estudar e a vida estava muito difícil e tal e tal.
“Seu tio mora longe do centro?”
“Um pouco. É um conjunto na zona norte. Perto do Mercado Velho.”
“Do Mercado Velho?”, disse eu com ênfase, como se de fato conhecesse o lugar. Eu não conhecia nada por aquelas bandas.
“Perto da Estrada do Moinho, sabe?”
“Ah…”, fiz eu como se tudo se esclarecesse.
“É lá. Chama Solar dos Jaburus.”
“Ah, é?”
“É.”
“Não sabia que o seu tio era um jaburu.”
Disse isso para descontraí-la, mas ela não percebeu. Assumiu uma expressão aérea, de quem já se perdia em outra coisa. Antes que nos calássemos de novo, continuei puxando conversa até mesmo para esquecer que estava com fome. Ela me disse que seu esporte predileto era o vôlei, mas que há uns cinco anos não jogava vôlei. Que gostava muito de ler romances, mas que só havia lido uns três ou quatro em toda a vida. Que era louca por praia, mas há muito tempo não ia à praia. Que adorava jardins, mas onde morava não havia nenhum jardim. E que não passava sem fazer ginástica aeróbica, embora não tivesse tempo para isso. Disse ainda que adorava televisão, mas assim mesmo ela me pareceu uma pessoa inteligente.
“Não diga.”
Enquanto conversávamos, constatei por duas vezes um tique nervoso que ligeiramente lhe repuxava o lábio para o lado direito, coisa que eu não havia notado antes. Claro que, de qualquer maneira, não deixava de ser uma garota muito atraente. Se não fosse, eu não estaria interessado nela, muito menos apaixonado.
Lembrei-me das horas, disse-lhe que estava atrasado e que precisava voltar ao trabalho. Quando falei em trabalho, ela recomeçou a chorar, enfiando o rosto entre as mãos, e eu tive de ficar mais um pouco, até que se acalmasse. Propus que nos encontrássemos no dia seguinte. Insisti nisso ao ver que ela se mostrava hesitante, mas propensa a aceitar.
“Vamos almoçar juntos amanhã. Você é minha convidada.”
Ela mordeu o lábio inferior. Olhou para baixo, para os próprios pés. Depois, para os lados.
“A que horas?”
“Meio-dia.”
Tornou a cismar, de uma maneira que me levou a crer que não aceitaria. Pensou de novo. Piscou duas vezes. O tique no lábio. Por fim decidiu-se, olhando-me de frente.
“Meio-dia e quinze.”
Despediu-se com um sorriso. Mesmo estando atrasado, não pude deixar de segui-la com os olhos, até perdê-la de vista, no dia claro de verão.
Que maravilhoso verão! E a minha vida parecia estar mudando, afinal. No dia seguinte, o salário na mão e eu almoçando com minha nova namorada – eu já a considerava assim, pois isso me parecia inevitável. Cheguei a imaginar-me casado com ela. Casado! Ora, e por que não? Deve ser mais estimulante enfrentar dificuldades a dois, como dizem. Será que eu fiquei maluco? Casamento, numa situação dessas? Tanto sol na cabeça afetou-me o juízo. Eu, que uma hora atrás…
“Desculpa! Opa!”
Alguém acabava de esbarrar em mim. O mesmo cego dos tapetes, que havia feito a volta no quarteirão. Mas que merda…
Quase não dormi, pensando nela, nessa musa ocasional do meio-dia, e em encontrá-la no dia seguinte. Podia rever com nitidez as suas lágrimas, a pele morena, o desenho de seus lábios e até aquele tique nervoso que… Enfim, podia reviver deliciosamente toda a cena de nosso primeiro encontro. Mais tarde, achei estranha aquela história de ela morar com um tio e, até por acaso, recordei o homem dos discos com sua cara indigesta, a maneira enfática como ele repetia: “Essa… Essa…”. Não, não era nada, tenho certeza. Detalhes sem importância, coisas que a memória grava sem querer. Mais tarde ainda, sempre pensando nela, ocorreu-me que não havia perguntado seu nome. Não, não havia. Bati com a mão na cabeça: será possível que eu seja assim? Ora, um simples nome. O nome da rosa, e que rosa! Se outro nome tivesse a capivara… – devo ter me lembrado disso por causa daquela conversa sobre Deus no bar do bordel. Nem é preciso que se diga, ando mesmo muito alterado. É no que dá quando se considera tanta coisa em tão pouco tempo, quando se misturam paixões à primeira vista, fome e teologia, mas que calor insuportável!
A conspiração dos felizes – Guia de leitura
Encontro no bordel: novas esperanças – anterior
Qualquer homem se apaixonaria por ela – sequência
Imagem: Andrea Clarkson. Sombrinha amarela (Quinceañera).
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